Chico Rei Entre Nós

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Logo Mostra SP 2020 Sinopse: Chico Rei foi um rei congolês escravizado que lutou pela liberdade  – a sua e a de seu povo – durante o Ciclo do Ouro em Minas Gerais. A história desse personagem é o ponto de partida para explorar os diversos ecos da escravidão brasileira na vida dos negros de hoje, entendendo seu movimento de autoafirmação e liberdade a partir de uma perspectiva coletiva.
Direção: Joyce Prado
Título Original: Chico Rei Entre Nós (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 35min
País: Brasil

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Um Rei contra a Escravidão e o Capitalismo

Chico Rei entre Nós” parte de um debate sempre válido quando tratamos de figuras históricas, principalmente aquelas que se destacaram pela forma como subverter a ordem institucionalizada de sua época. Joyce Prado, em sua estreia na direção de longas-metragens, constrói seu documentário (parte da programação da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo dentro da Competição Novos Diretores da Mostra Brasil) de forma convencional. Testemunhos atuais e montagem tradicional. Porém, a forma como ela conduz nosso passeio por Ouro Preto cria uma reflexão sobre a necessidade e benefícios de supostas mitificações, partindo de uma provocação comum promovida por quem deseja apagar um passado de luta.

Vale ressaltar que a cineasta não quer criar dúvida ou desvalorizar qualquer manifestação aqui. Pelo contrário, ao iniciar a jornada sob esse manto, ela encontra argumentos para pluralizar e apresentar a riqueza e a influência da cultura africana e da luta do povo negro no Brasil. O questionamento inicial, contudo, merece ser desdobrado. Chico Rei, a princípio, seria um rei congolês escravizado que comprou sua própria liberdade e de conhecidos e, em seguida, prosperou a ponto de ser proprietário de terras, algo impensável na lógica colonialista da época.

Os feitos dele vão além e, após uma aparição de Santa Efigênia, foi orientado a construir igrejas para os negros professarem sua fé no sincretismo religioso que, até hoje, constitui um dos grandes símbolos da nossa riqueza cultural. Portanto, é natural essa dúvida acerca da existência de um Chico Rei ou de ser sua personalidade a junção de vários representantes da resistência e da luta de um povo na época (por sinal, construção de pensamento comum, de Jesus a Shakespeare). Por outro lado, questionamentos podem levar a apagamentos. Claro que a diretora sequer flerta com esse objetivo. Ela instiga para trazer não uma ou duas, mas diversas provas do legado de Chico no Brasil.

O primeiro grande tema que “Chico Rei entre Nós” traz é a mineração do ouro, momento em que o prolongamento da abordagem se assemelha a uma visita guiada sobre a histórica região mineira. Todavia, não havia outra forma de ser informativo sem apelar para inserções ficcionais ou outras ferramentas. Editada de forma dinâmica, essa parte do filme traça um bom panorama sem fazer concessões de linguagem. Sem contar que a provocação mais latente está ali, verbalizada – e diz respeito à maneira como a história do mundo, sob a ótica eurocêntrica, se valeu de riquezas extraídas de minas como aquela. O povo negro fez o Brasil e com sua força de trabalho explorada sustentou a Europa – e isso não há revisionismo histórico que consiga afetar.

Alterna essa fase inicial com os testemunhos de senhores e senhoras de Ouro Preto que refletem a transmissão da história de Chico a partir da oralidade. Um ponto fundamental na constituição de um documentário que a própria cineasta define como uma cartografia social – e sob esses aspectos se mostra muito contundente. É o momento em que a forma humanitária de atuação da figura histórica que dá nome ao filme se sobrepõe, como se materializasse a filosofia Ubuntu – como bem trazido por um dos testemunhos. Nome, aliás, que fazia parte do processo de etnocídio imediatamente inaugurado pelos portugueses, que exigia que a vinculação com a África a partir das formas de chamamento se desfizessem assim que homens e mulheres chegassem na América. Uma aula para os defensores da meritocracia, que ganhará ainda mais força quando o longa-metragem trouxer, em sua segunda metade, o panorama atual.

Da construção da igreja de Santa Efigênia, Joyce Prado nos leva para o caminho da religiosidade, mostrando como a divisão social sempre foi a regra em espaços falsamente democráticos como esse. Sai de Ouro Preto para registrar uma forma de apagamento histórico muito comum nos grandes centros, a partir do Lardo da Forca, localizado no bairro da Liberdade, em São Paulo. Falamos um pouco dele em nosso texto sobre o curta-metragem “Liberdade“, mas merece ser mencionado “Por Trás da Pele” e “Cidade Pássaro“, este também parte da Mostra SP. Uma quebra da linha-mestra da narrativa que faz todo o sentido para quem se preocupa em trazer um olhar observador sobre territórios. Caminhar por locais como Ouro Preto e São Paulo é se perguntar o que aquela placa significa e porque uma igreja como a Capela dos Aflitos faz parte de um bairro de “colonização japonesa” (as aspas são para ir além do rótulo e não para diminui-lo).

Do apagamento, “Chico Rei entre Nós” vai falar de opressão. Não se trata aqui de uma relação de causa e consequência. Joyce Prado nos traz as lutas históricas e o panorama contemporâneo. O faz retornando a Ouro Preto para comprovar que o conhecimento sobre o passado é a grande arma para construirmos um país socialmente mais justo. Nas comunidades periféricas somos levado à parte final do longa-metragem, partindo de uma típica conversa de mesa de bar onde observamos que a análise crítica sobre a própria História precisa ser uma constante. Uma figura histórica que fez parte de uma lógica institucionalizada de obtenção de capital precisa fazer algum sentido.

É novamente um pouco mais didático quando interpreta uma procissão que parte da igreja de Santa Efigênia com uma narração em off, parte da cerimônia do Reinado, que anualmente coroa novamente Chico em sua homenagem. Alguns podem ver uma perda da potência das belas imagens do cortejo e dos cantos, um exemplar inestimável do sincretismo religioso. Todavia, é uma construção necessária em uma obra que se propõe a fornecer uma grande carga de informação, resgatar o passado e contar uma história que muitos ainda não conhecem.

Todavia, é na Ocupação Chico Rei que uma das moradoras traz o grande testemunho de “Chico Rei entre Nós“. Ela diz que “não mudou nada, o que antes chamavam de escravidão, agora chamam de capitalismo“. É isso. Seu legado está nas histórias transmitidas pela oralidade, nas visitas guiadas das minas onde o processo de extração do ouro nos é apresentado, na geografia de grandes centros urbanos e nas periferias onde o povo trabalhador reside. Mas ele vive mesmo é nas reuniões comunitárias de um povo que, em respeito à sua existência, segue nessa mesma terra sua luta por direito à liberdade, sendo este um conceito em permanente construção.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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