Cidade Pássaro

Cidade Pássaro

Sinopse: O nigeriano Amadi procura seu irmão Ikenna na cidade de São Paulo. Aos poucos percebe que o supostamente bem sucedido professor de matemática inventou para sua família uma narrativa imaginária de sua vida no Brasil. Amadi descobre lentamente a verdade em uma missão pelo submundo da cidade.
Direção: Matias Mariani
Título Original: Cidade Pássaro (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 42min
País: Brasil | França

Cidade Pássaro

Arquiteto do Destino

Cidade Pássaro” faz uma interessante trajetória nesse louco ano de 2020. Em fevereiro era recebido com aplausos na Mostra Panorama, do Festival de Berlim. Tudo indicava um longo ciclo para a co-produção entre Brasil e França no circuito para a estreia na direção em longas-metragens de ficção para o experiente produtor Matias Mariani. Co-roteirista de “Pendular” (2017), ele divide os créditos da escrita novamente com Júlia Murat e outras seis pessoas, uma ideia de coletividade por ele materializada em uma obra cheia de elementos a serem apontados.

Menos de quatro meses depois, porém, o filme chegou à Netflix em todo o mundo (à exceção do Brasil, visto que os realizadores tentam levar ao máximo os planos de lançamento comercial quando os cinemas reabrirem). Provavelmente adquirida nos balcões de negociação da Berlinale, a narrativa aqui se coaduna com os anseios do espectador deste tipo de produto – o que torna compreensível a escolha da plataforma de streaming. “Cidade Pássaro” não apenas retoma a imigração como objeto central, mas o faz com uma mistura de reflexão sobre destino e real sentido de existência.

Mariani, em suas diversas entrevistas nos bastidores do festival alemão, gostava de chamar a atenção sobre o primeiro tema citado. Em momentos de profunda crise econômica, principalmente esta em que a sociedade ultra-globalizada tem passado na última década, as movimentações de pessoas aumentam e histórias de recomeços em outras nações se amplificam. Narrativas que servirão de base para o surgimento de novas comunidades e profundas mudanças na sociedade. O país sempre se valeu disso, vivendo algumas ondas de imigração – espontâneas ou forçadas. Todas elas trouxeram consequências. No momento, São Paulo é o maior cenário dessas renovações de sonhos, mas parece que a população brasileira não se encontra disposta a trazer o assunto à baila.

Só que o audiovisual não deixa nada passar e, em pouco mais de dois meses de Apostila de Cinema, já se tornou comum encontrarmos obras que aproximam essa discussão. A mais forte delas é o curta-metragem “Por Trás da Pele” (2018), de Cristian Cancino, que assistimos na Mostra Paralela do Festival de Taguatinga. Ali, Joris é um imigrante haitiano à procura do irmão na rodoviária de São Paulo. Em “Cidade Pássaro” somos apresentados a Amadi (O.C. Ukeje), que também se desloca à metrópole paulista atrás do irmão, Ikenna (Chukwudi Iwuji). Há um diálogo entre obras aqui bem mais no elemento da utopia do anonimato de uma grande cidade do que na pungência do uso da corporalidade negra, mais explorada por Cancino do que por Mariani.

O longa-metragem segue uma narrativa mais atraente ao espectador-médio ao incluir um elemento de perseguição, de busca da verdade. Isto porque Ikenna, sempre que entrava em contato com a família na Nigéria, dizia estar bem, em meio a um reconhecido trabalho como matemático. Porém, não é facilmente localizado por Amadi. Essa movimentação desperta a curiosidade, ao mesmo tempo que o cineasta usa como base a produção de uma ideia de imagem que se repete: a arquitetura monstruosa e deveras esquisita de São Paulo, sempre de baixo para cima. Uma maneira óbvia de mostrar o sentimento de impotência do protagonista, mas que materializa a sensação de labirinto na qual parece estarmos atravessando.

Cidade Pássaro” ainda transita por algumas questões até encontrar seu caminho. A ancestralidade e a dúvida identitária pela conversão ao anglicanismo, por exemplo. Reflexo direto da expansão do Império Britânico e da colonização do século XIX e metade do XX. Todavia, o que atrai mesmo no longa-metragem é a trajetória do pensamento de Ikenna, sem que ele necessariamente precise estar presente em cena. Sua genialidade matemática e seu sistema de algoritmos levaram seus estudos a tratarem da incerteza da vida. É sempre interessante ver como questões filosóficas e existenciais podem ter mais relação com ciências exatas do que imaginamos.

Desta maneira, a obra suscita a reflexão sobre nossa capacidade de construir nosso próprio acaso. Uma tentativa de afastar a ideia de que não somos cosmicamente conectados, uma conclusão comum que acaba engessando o desenvolvimento de nossas potencialidades. O longa-metragem faz um arco primoroso de abordagem do problema, desenvolvimento em um plano real e mundano, para trilhar esse caminho de unidade espacial, de conexão permanente de corpos. Ao final, entrega ao público algumas dessas conexões e, ironicamente, se contradiz – ao mostrar o personagem pedindo à mãe que lhe deseje sorte.

Portanto, “Cidade Pássaro” faz o jogo de pedir ao espectador para buscar suas verdades e seus significados – com pitadas de suspensão de emoções e induções de elementos sobrenaturais. Não poderia deixar de ser mais completo na tentativa de angariar uma plateia que, perdida em pensamentos, consegue extrair um pouco de si da obra.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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