Sinopse: “CidadeFantasma” é Um Western experimental feito com glitces que critica mitos e ideologias do oeste americano, enquanto retrabalha e interrompe gêneros familiares.
Direção: jonCates
Título Original: 鬼鎮 | Ghosttown (2020)
Gênero: Faroeste Experimental
Duração: 1h 5min
País: Estados Unidos
Oeste Meritocrático
“CidadeFantasma” comunga todos os dotes de jonCates, realizador norte-americano que, conforme mencionado na ficha técnica que acompanha sua descrição no catálogo do Festival Ecrã (onde a obra será exibida até o dia 30 de agosto) também é desenvolvedor de jogos, noise musician e glitch artist. Este último está presente em toda a trajetória do filme selecionado. Glitch é a transformação dos erros gráficos, aqueles que podem transformar a imagem tanto em um emaranhado de pixels como em uma mistura de linhas ininteligíveis, em um elemento estético na fruição audiovisual.
Com isso, temos uma produção bem diferente de “Sertânia“, mais recente sessão assistida na mesma mostra. Sai o virtuosismo e a acuracidade de execução de Gustavo Sarno e entra uma outra forma de envernizamento. Na verdade, há uma má escolha de vocábulo aqui, porque Cates não quer polir esteticamente sua criação – ele quer saturar, visualmente e sonoramente. Não ao extremo, como Jacques Perconte fez em “Albâtre” (2018), exibido na edição passada do festival. Mas ele quer deixar claro que seu faroeste não é uma ode ao gênero e sim a exorcização. Não apenas do western em si, mas de que tudo o que há de mal resolvido naquela parte do território dos Estados Unidos.
O cowboy não tem voz em “CidadeFantasma“, o cineasta concede justiça e nos desloca daquele ambiente masculinizado e branco e entrega o discurso a uma jovem representante do povo navajo (diné, para respeitar a etnia, conforme informação da própria narradora). Uma nação que se construiu a partir da exploração de território e ao preço da escravidão e do genocídio. Cates nos lembra desde o princípio que estamos lidando com incontáveis mortes, atirando caveiras no meio da tela em larga escala. Mas a personagem bem diz que “não tem como negar minha existência“. Sua voz transita pelos grandes símbolos do Oeste. O gado, a colheita de algodão, a pequena igreja protestante. Uma iconografia que nos chegou por osmose por culpa do próprio Cinema estadunidense.
Sendo uma obra que se vale dessas criações, estamos ainda dentro de experimentalismo provocador, mas sem qualquer verborragia visual (perdão pela licença poética) gratuita. Há debate aqui e gatilhos que transferem as representações de Cates para a contemporaneidade. Afinal de contas, como bem um personagem verbaliza, “os ladrões ainda estão por aí, cavalgando e roubando“. 2020 é ano de eleição presidencial nos Estados Unidos e o povo terá que decidir entre dois cowboys modernos. Mesmo sendo da Pensilvânia e de Nova Iorque, Biden e Trump se encaixariam perfeitamente na programação do sistema pensado em “CidadeFantasma”.
O realizador deixa para o terço final (chamado de vale da sombra da morte) um expediente pouco usado no american way de se produzir Cinema e entrega seus truques, com linhas de programação e demonstrações do CGI. A cultura dos Estados Unidos é de conflito e o país baseia seu sucesso e discurso meritocrático nessa competição. Tem orgulho de se ver como uma nação livre – para que uns pisem nos outros. O Cinema convencional já trouxe outro vale da morte, no longa-metragem “No Vale das Sombras” (2007) de Paul Haggis, em que um homem procura seu filho que desapareceu após retornar da Guerra do Iraque. A Grande História Americana (como eles gostam de nomear suas epopeias, desde os bestsellers até os épicos da Era de Ouro de Hollywood) sempre passam pelos mesmos dramas, com poucas alterações no espaço – mudando somente o tempo.
Nessa atualização de jonCates, em que a ideologia californiana é uma fronteira que desaparece, encontramos uma criação original de um artista que possui a complexidade de sua geração. Por isso seu clímax é tão impactante. O noise musician nos deixa perdidos entre sons que vão de videogames antigos até de um modem em funcionamento. E a imagem tem as linhas de criação de jogos, sob uma perspectiva de drone, dando a um inocente cemitério algo como imagens de satélites que nos acostumamos a ver desde a Guerra do Golfo. Ao adicionar todos esses elementos que deixariam qualquer cowboy do século XIX confuso e anulado em seu poder, o diretor inaugura em “CidadeFantasma” sua própria Era das Comunicações. É a parte mais inspirada da obra, principalmente sua conclusão, um impecável discurso que resgata a ancestralidade, ao mesmo tempo que registra que aqueles homens brancos também têm as suas histórias – e traumas que nem o mago jonCates conseguirá resolver.
Clique aqui e confira nossa cobertura completa do Festival Ecrã.