Sinopse: Em 2002, sequestradores invadiram um teatro lotado em Moscou e mantiveram os espectadores e artistas reféns até uma intervenção militar que termina com mais de cem mortos. “Conferência” imagina como alguns personagens que viveram esta situação buscam maneiras de lidar com ela para seguir adiante. No limiar entre o trauma nacional, pessoal e familiar, esta ficção se constrói em torno de uma perturbadora longa sequência encenada no mesmo teatro, em que os relatos e lembranças vão aos poucos se tornando uma nova clausura que presentifica o passado de forma radical.
Direção: Ivan Tverdovskiy
Título Original: Конференция (2020)
Gênero: Drama
Duração: 2h 13min
País: Rússia | Estônia | Reino Unido | Itália
A Liturgia do Tempo
“Conferência“, quarto filme do cineasta russo Ivan Tverdovskiy, é outro representante da mostra competitiva do 10º Olhar de Cinema a tratar das distantes memórias da infância vinculadas a uma tragédia que abalou determinado país. Porém, ao contrário do argentino “Estilhaços“, a pessoalidade e o documental são mitigados, em uma ficção que nos desafia por uma arte ritualística, litúrgica, como poucos fora do extinto eixo soviético conseguem promover no audiovisual.
Exibido na mostra paralela Diornate degli Autori do Festival de Veneza de 2020, a obra possui três partes facilmente identificáveis: o antes, durante e depois de um memorial sobre os dezessete anos do atentado terrorista no Teatro de Dubrovka em 26 de outubro de 2002. Promovido por um movimento separatista checheno, o assassinato de quase duzentas pessoas foi um grande passo atrás no processo de retirada de tropas russas daquele território. Até hoje um trauma para os sobreviventes e parentes das vítimas, sobretudo pela forma negligente como as autoridades trataram o caso, contribuindo para que fosse ainda mais danoso.
Um prólogo com uma longa cena em que um aspirador tira a poeira nos tapetes do teatro é o indicativo de que o ritmo do longa-metragem será alguns pontos mais vagarosos do que o tradicional. O primeiro terço mostra Natasha (Natalya Pavlenkova), uma madre que retorna de um distante monastério para o encontro com Sveta (Olga Lapshina) e a lembrança da tragédia. Um luto estendido, repetido anualmente, que não tem a adesão de sua filha, Gayla (Kseniya Zueva), mais preocupada em cuidar do pai Oleg (Aleksandr Semchev), um senhor em estado quase vegetativo. A reserva de espaço do teatro recebe o nome de conferência, já que o questionário de requisição não comporta esse ato sui generis e de difícil categorização que acontecerá.
Assim como as Mães da Praça de Maio em Buenos Aires, essa perpetuação do trauma implica em questões complexas. Se no território latino-americano a motivação sempre foi a ausência de respostas – muitos dos jovens desapareceram sem nunca se esclarecer o que a ditadura fez com eles – aqui parece uma cruzada anti-superação por parte da protagonista.
Veja o Trailer:
Tanto é verdade, que chama a atenção a presença de menos de duas dezenas de pessoas ao memorial, um ritual que emula um funeral tardio. Natasha almeja reconstituir com testemunhos os fatos da noite de 2002, desde as etapas do ataque e as incompreensões iniciais, até o choque das primeiras mortes e o terror que se seguiu. Tverdovskiy inicia o segundo terço com um plano bem aberto, captando o máximo que pode o vazio daquele local, preservado em sua configuração e objetos da época. Todo o processo que se segue trará novos rostos, de outros familiares e sobreviventes. Porém, até que chegamos a ele, ficamos com a impressão de que a solidão da personagem é ainda maior – e provavelmente a grande mola propulsora de seu exílio.
Há uma dicotomia curiosa nessa narrativa. Ao mesmo tempo em que se critica a intenção de perpetuar o luto por parte daquela senhora, a tal noite da “conferência” registra o abandono daqueles agentes pela sociedade. No ciclo de novos problemas que se sucedem, tais dramas foram superados enquanto comunidade, permanecendo internalizado para os poucos que ali estão. A forma pela qual Natasha almeja relembrar o fato é se aproximar o máximo possível daquela experiência. Ouvir mais uma vez os relatos, algo que, sem dúvida, foi se alterando através dos tempos.
Vale mencionar informação da conversa entre Eduardo Valente e Eduardo Bonfim no canal oficial do festival no YouTube – e que você assiste ao final da crítica – de que dois jovens são os únicos não-atores do longa-metragem, eles eram crianças no Dubrovka em 2002 e são responsáveis por um momento de sinergia entre documental e ficção.
Durante a sessão ficamos equilibrando alguns sentimentos. Parece óbvio que não é um expediente realizado para promover superação ou o exorcismo de demônios que afligem a alma daquelas pessoas. É um cerimônia de objetivos inalcançáveis, é quase como se todos ali quisessem apenas se reconhecer pela dor. Deve ser difícil encarar o mundo com um fardo tão pesado nas contas, uma inquietude tão escabrosa na mente e não poder compartilhar ou ter essa aflição respeitada porque “a vida seguiu”. Tem em Gayla o grande exemplo. Ela foi consumida por novas questões, envolvendo o pai e tudo o que lhe cerca. Apenas no abandono do convívio social, como faz a protagonista, conseguimos paralisar o processo de agressão à alma que a existência fatalmente promove. Nesse caso não há novas crises, tudo bem, mas o passado fica ressoando indefinidamente.
A polícia insiste em acabar com a cerimônia e o testemunho específico da protagonista é interrompido após um lindo uso da iluminação cênica pelo cineasta, colocando o rosto da atriz ocupando a tela o suficiente para assistirmos o teatro sumindo ao fundo. Ali o último terço tem início e se relaciona com a volta para casa, com a personagem seguindo de onde parou a sua explanação. Será a única vez em que alguém confrontará a mãe enlutada, mostrando a ela que essa eternização é uma forma de tortura – não apenas em autoflagelo, mas enquanto punição a todos os que estão à sua volta.
“Conferência” termina a sua liturgia com uma forma mais tradicional de rememoração. Uma visita ao túmulo daquele ente querido, revelando a idade do garoto. Em meio a tantas produções que usam a memória, ressignificam imagens e têm na reconstituição expediente comum às suas narrativas, Ivan Tverdovskiy nos mostra o poder devastador de achar que esquecer e superar são atos de desrespeito.
Assista à conversa entre Eduardo Valente e Leonardo Bomfim sobre “Conferência”: