Sinopse: Em 31 de dezembro de 2019, o primeiro caso do novo coronavírus foi confirmado em Wuhan. As autoridades chinesas negaram repetidamente que a transmissão de pessoa para pessoa era possível, ocultaram o número de pacientes diagnosticados e puniram a equipe médica por divulgar informações sobre a epidemia. Em 23 de janeiro de 2020, a cidade foi colocada sob lockdown e, logo, a Covid-19 tornou-se uma pandemia global. Coronation examina o controle político do Estado chinês do primeiro ao último dia do lockdown em Wuhan. O filme registra a resposta militarizada e brutalmente eficiente do governo para controlar o vírus, os amplos hospitais de campanha que foram erguidos em questão de dias, os 40 mil médicos e enfermeiros que foram trazidos de ônibus de toda a China, além dos moradores locais, que foram trancados em casa. Ai Weiwei dirigiu, produziu e completou a pós-produção do longa remotamente da Europa. As filmagens foram feitas por cidadãos comuns que moram em Wuhan.
Direção: Ai Weiwei
Título Original: Coronation (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 55min
País: China
Um Furacão Cego
Um dos grandes exercícios das ciências humanas e biológicas nos próximos tempos será entender o que aconteceu em 2020. Um ano capaz de trazer a palavra “normal”, já quase inutilizada, ao centro do debate. Tudo mudou e “Coronation” traz o que deveria ser o olho do furacão deste processo. Menos de doze meses depois do primeiro caso de pessoa infectada pelo novo coronavírus, o diretor Ai Weiwei nos traz imagens de Wuhan, o local onde a doença se manifestou oficialmente pela primeira vez (cuidado àqueles que dizem que foi lá que ela “surgiu”, outro vocábulo extremamente problemático). O filme fez parte das apresentações especiais da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Compondo imagens de moradores daquela região, a perspectiva do documentário não poderia ser diferente, é a do olhar. Câmeras e celulares se colocam, à exceção de algumas cenas dentro de carros ou momentos mais ensaísticos, na altura e ocupação de espaço que o produtor daquele conteúdo entende sua. O que é irônico, de certa forma, já que tudo o que circunda aquela realidade é difícil de acreditar. Hospitais de campanha, protocolos sanitários. Termos cunhados para serem aplicados em graves crises, guerras e desastres naturais – e parece que estamos vivendo uma mistura de todos elas. Com medo de ser apenas uma prévia.
O isolamento rígido, chamado de lockdown, é o ponto de partida de “Coronation“. O cineasta capta as imagens de um grande centro urbano vazio, uma espécie de neon fantasma. Apesar de não ser a estética que se imponha no documentário, é relevante no material de divulgação porque confronta o avanço chinês, em vias de se tornar o país mais rico do mundo, com um momento em que o planeta parou – a começar por eles. Ao sair do confinamento, alguns ainda distantes de suas casas, algumas vidas começam a ser divididas com o espectador. O aquário de peixes mortos de fome ou intoxicados após semanas sem cuidado é a única morte que Weiwei coloca na tela nesse primeiro momento.
Todavia, o sentimento de perda está incrustado na obra por todo o tempo. Prolongando as sequências, variando entre o desabalo e a melancolia, ele nos traz uma trilha sonora reativa, moderna, a base de sintetizadores. Faz do documentário uma narrativa industrial, tal qual a área de Wuhan. Isso não nos deixa esquecer que o coronavírus é um agente externo, mas que as características da “Nova China” permaneceram, não se esvaíram nesse 2020 caótico, mas que seguirá seu caminho.
Algumas cenas auxiliam na dimensão da crise e na forma como o país entendeu a gravidade. Um exemplo é a longa caminhada claustrofóbica de um médico pelos apertados corredores do hospital de campanha – após um longo ritual em que coloca a roupa especial de trabalho. A formação de um polo em que pacientes de médio e grave risco são tratados ao mesmo tempo em que pesquisadores tentam entender a doença, com incontáveis exames laboratoriais. Sequências que dividem espaço com a captação de conversas com a família distante. De fato, uma guerra em que não sabemos ao certo como combater o inimigo – e nem o quanto ele irá destruir antes de selar a paz.
“Coronation” é uma obra de permanência. Cria sua trajetória que, mesmo não sendo escalonada, consegue ser individualizada. A saída do lockdowon, o trabalho dos médicos e a chegada dos voluntários – outro momento que se assemelha a de uma batalha. A parte final, mesmo sendo tão pouco dinâmica quanto o restante do filme – o que pode cansar um pouco parte do público, mesmo interessado no tema – é a mais esclarecedora. Longas conversas com algumas senhoras e o filho de um senhor que morreu de covid-19 nos apresenta algumas visões sobre o comportamento do governo chinês.
As repúblicas comunistas, aparentemente, lidaram melhor com a crise. A socialização dos danos sendo uma espécie de linha ideológica (falta espaço para sermos menos reducionistas do que isso) tem gerado uma proporção de vítimas menores nessas nações. Porém, Weiwei traz na montagem os contrapontos, como a tentativa de forte controle sobre a movimentação das pessoas pelos aparelhos de celular e, a mais grave, a omissão de informações sobre a gravidade do vírus no início, em dezembro de 2019.
Por fim, “Coronation” relata um pouco as vítimas reais. Um grande impacto pela forma como lidamos com milhares de mortes simultâneas. Aliás, não lidamos. Um inimigo desconhecido, que não escolhe opositor, capaz de destruir nossa existência, não foi capaz de nos unir. A dor do luto ainda é vivida na intimidade daqueles que tem relação afetiva com a estatística do dia. Tanto o documentário de Ai Weiwei quanto a crise pela qual passamos seguem em construção, mesmo que isso seja negado. Mais uma vez, como uma pela contraditória, o cineata sabiamente mostra que não soubemos parar. Então, ele apresenta aquela terra de neon renascido a quem busca otimismo e acha que já começamos a escalar o poço no qual caímos.
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