Sinopse: Um dia na vida de Jaroslav, um belo e aparentemente bem-humorado filho, pai e marido. Tímido motorista de ambulância, ele tem um relacionamento complexo com a esposa, Blanka, que usa os três filhos do casal como chantagem para conseguir o que quer. Jaroslav, por sua vez, esconde que tem ciúmes patológicos de Blanka e pavor de que ela o abandone com os três filhos. Em “Cozinhar F*der Matar”, várias versões sobre como Jaroslav tenta salvar seu casamento são engenhosamente contadas e desdobradas na narrativa, em que papéis e a dinâmica de poder são invertidos, sempre culminando em muito sangue e louças quebradas.
Direção: Mira Fornay
Título Original: Žáby bez jazyka (2019)
Gênero: Dramédia
Duração: 1h 56min
País: República Checa | Eslováquia
Tempero de Família
Na cena inicial de “Cozinhar F*der Matar” (os algoritmos vão pirar com esse título) um grupo de mulheres contam uma história, em ritmo de anedota, em que descrevem uma sequência de atos praticados por agentes diferentes. Em comum, o condicionamento a uma outra atitude do agente imediatamente anterior. É como se parar você ler esse texto, eu precisasse escrever e, para poder escrever, a Mostra SP precisaria selecionar para exibir no recorte Perspectiva Internacional da edição de 2020.
Essas mulheres compõem uma espécie de patrulhamento externo à trama familiar costurada pela cineasta Mira Fornay. Uma obra que dialoga com as construções narrativas que inquietam por serem bizarramente instigantes. A produção da República Checa e da Eslováqui nos remete à filmografia do grego Yorgos Lanthimos. Na temática, algo próximo de “O Sacrifício do Cervo Sagrado” (2017). Porém, com uma linguagem que perpassa quase todos os filmes desta natureza. A teatralização, o flerte com o deboche, as captações estilizadas e uma trilha sonora provocativa – em forma incidental, com ênfase nos violinos cortantes. Nessa ambientação, o longa-metragem nos leva a refletir como essas condicionantes se aplicam nas relações mais íntimas.
Jaroslav (Jaroslav Plesl) é um homem que só quer ter contato com seus filhos. Para isso, ele fará o que for necessário para ter acesso a eles, com receio de que a esposa, Blanka (Petra Fornayová) se afaste de vez. Desta forma, a narrativa constrói algumas possibilidades de solução – ou conclusão, cabe ao espectador a leitura. Todas com muito tempero e sangue, uma tragédia festiva como qualquer reunião familiar.
Fornay usa muito bem a premissa de que temos, em nossos laços afetivos, um grande poder: o de machucar. Ao mesmo tempo que baseamos essas relações no amor, o profundo conhecimento sobre o outro nos ensina o caminho para a dor. Apesar da construção social de que a família é uma fortaleza, fato é que boa parte dos relacionamentos desses núcleos são impostas pela proximidade ou, novamente ele, pelo sangue. A imprevisibilidade é uma marca dessas relações – basta pensar como, ao longo de cinco ou dez anos, brigamos, fizemos as pazes, paramos de nos falar ou realizamos provas de respeito e carinho para com nossos parentes. É nesse jogo que “Cozinhar F*der Matar” se coloca.
Jaroslav é um protagonista ciente dessas condicionantes. Em um dos finais possíveis, suas derradeiras palavras sentenciam que “se ele fosse mulher, a história seria diferente”. O roteiro, também de Mira Fornay, joga com a percepção sobre uma perseguição ao personagem (lembrando da patrulha de mulheres da cena inicial, que sempre retornam ao filme com julgamentos imediatos). Ao mesmo tempo, inicia com ele a escalada de violência do filme. É como se criasse no público a desconfiança acerca do suposto injustiçado. Uma leitura, por sinal, sempre necessária quando ouvimos histórias envolvendo famílias que não as nossas – mas também importante para que não cometamos erros de julgamentos junto à nossa.
Com diversas relações de causa e efeito cada vez mais estranhas, o longa-metragem consegue manter essa aura provocativa até o fim. Expõe as relações doentias no seio familiar, que nunca conseguiremos captar no verniz desconstruído do pai que constrói o próprio forno do canal pago ou do casal milionário que faz propaganda para supermercado popular na televisão aberta. Às vezes por interesse, muitas vezes por amor – mesmo que ele seja inexplicável – as atitudes que tomamos em face dos parentes sempre merece ser estudada.
No final, essa é a forma como “Cozinhar F*der Matar” se apresenta. Um estudo de caso, uma expansão de possibilidades, mesmo que a lógica não permita. Mira Fornay ainda consegue, nas melhores sequências do filme, utilizar a mesa de jantar como o grande elemento cênico. Um espaço sempre reconfigurado, de acordo com as crises pelas quais todos nós passamos na intimidade. A gente nunca sabe quem são essas pessoas.
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