Sinopse: A fluidez de uma geração que tenta não se prender às amarras de um relacionamento, mas seguem o mesmo hábito de seus antepassados: colorem sua vida afetiva com muita música, como se pudessem controlar a trilha sonora de vossas existências.
Direção: Rafael Gomes
Título Original: Música para Morrer de Amor (2019)
Gênero: Romance
Duração: 1h 44min
País: Brasil
Partilhando Vida Boa
“Música para Morrer de Amor“, apresentado no Festival Espaço Itaú Play, é uma das pré-estreias mais promissoras da temporada adiada pela pandemia do Covid-19. O cineasta Rafael Gomes, em seu segundo longa-metragem, consegue destacar sua obra em meio a uma seleção pesada de nomes consagrados do audiovisual nacional. Utiliza uma fórmula bem comum no Cinema Brasileiro, mas que não demonstra sinal de desgaste: a utilização da música popular como guia de sua narrativa.
Há algumas diferenças, claro – e elas são tão interessantes quanto as semelhanças, desse filme baseado em uma peça a ser lançado em breve pela Vitrine Filmes. A primeira delas é que a trama de “Música para Morrer de Amor” retrata com muita fidelidade uma geração que se baseia na fluidez. Não apenas dos relacionamentos, mas de deslocamentos e – por óbvio – da própria existência. O ponto de partida da história é a chegada de Felipe (Caio Horowicz) na Secretaria de Cultura de São Paulo. Uma decisão narrativa que, além de enquadrar um dos protagonistas em um escopo de personalidade, permite ser desculpa para a participação de alguns nomes importantes da música brasileira. Não entraremos em detalhes, uma vez que a trajetória musical do espectador é imprescindível para a diversão.
Aliás, uma das dificuldades de se falar sobre o longa-metragem é não se socorrer no lugar-comum de enumerar referências das canções presentes em toda a projeção. Trata-se de um gostoso musical, que tenta encapsular o tempo como algumas produções o fizeram no passado, como “Menino do Rio” (1982) de Antônio Calmon. Só que, ao mesmo tempo, a obra se revela uma espécie de jogo, em que o público fatalmente antecipará as ações a partir das referências – e vice-versa. Enquanto Marina Person revisitou os anos 80 em “Califórnia” (2015), Rafael Gomes emoldura uma das gerações mais promissoras a qual testemunhamos, justamente pela intenção de desapego com tudo e todos. Ainda é importante qualificar a obra como de temática LGBTQIA+, apesar da consciência de que muitos o fazem não como um elemento de identificação, mas como um aviso. Debate longo que não cabe nessa análise de uma obra que, até pelo apego popular, suscita muitas questões a serem abordadas.
O que projeta “Música para Morrer de Amor” mais alguns degraus é que resgata na historiografia da canção popular paralelos que provam que – em questão de relacionamentos – o amor segue sendo brega. Qualquer letra de Cazuza, Orlando Silva ou Rubel desemboca em Shakespeare. Todo jovem sofre um saudosismo do que nunca viveu. A diferença é que Felipe, ao lado de Ricardo (Victor Mendes) e Isabela (Mayara Constantino), não se prendem a muitas convenções sociais que perduram há séculos. O cineasta sabe em que posição se encontra e para quem fala. As primeiras sequências do longa-metragem transitam do bloquinho de Carnaval ao cinema cult da área mais cara da cidade – sem que precisemos de confirmação, sabemos disso. O pôster de “Frances Ha” (2012) na parede tem a mesma luz rosa da festa no apê da cena seguinte – aquelas em que bêbados, dizemos pela primeira vez que amamos alguém.
Até que Gomes decide verbalizar e define um dos protagonistas como “lindo e tão burguês”. Sabe que contextualizar e limitar espaços não enfraquece o debate. Esfrega na cara do público a insatisfação das amarras de um relacionamento padrão heteronormativo, para nos livrar de algumas outras amarras. A principal delas, a musical. Há amor em O Terno e em Jads e Jadson. No meio desse caminho, há o Cazuza de novo. Tão lindo e tão burguês – quão fluido ele seria em 2020? Esse exercício de pensamento provocado por “Música para Morrer de Amor” faz crer que ele talvez frustrasse tanto quem segue fã do Ultraje a Rigor quanto os que lamentam o exílio eterno de Rita Lee em seu sítio.
Há momentos em que o filme parece progressista no discurso, mas ainda careta nas representações. Percepção equivocada, uma vez que – ultrapassada a preocupação em colar a placa de “brega” em todas as representações românticas, Rafael Gomes apenas quer afastar a objetificação e deixar em nossa mente até onde aquelas experimentações chegam. Explode em paixão, deixando de lado a caretice, usando de fundo Rubel, um dos cantores mais fofuxos da atualidade. Esse transitar de canções de todas as épocas é envolvente e a montagem ligeira, com cenas onde a ação logo se desenvolve, aproxima o longa-metragem das comédias românticas urbanas que volta e meia conseguem boa receptividade do grande público no Brasil.
Mesmo sem abraçar o mundo, afasta o ranço sexista e pouco representativo de filmes (aí, sim, caretas – para os padrões de 2020) como “Pequeno Dicionário Amoroso” (1997) e “Sexo, Amor e Traição” (2004). Permite de forma superficial debates paralelos sobre a fluidez fora do romance. Tiago (Thiago Ledier) provoca interesse por ser uma espécie de agente externo, representando essa insatisfação com a ocupação do mesmo espaço. Uma juventude que vê tudo ser motivo para gerar uma necessidade por deslocamento. Seu retorno em cena é uma das formas do filme tratar das hipóteses em que a tal fluidez não é tão bem resolvida. No final das contas, quando a ausência de padrão vira uma regra, podemos dizer que ela também virou um padrão.
Vale mencionar o uso do Instagram como linguagem, uma estética sempre atrativa. O diretor ensaia uma confusão entre realidade e ficção, já que coloca seus personagens em ambientes que assim o permitem, como um teatro. Chega determinado momento em que ele aposta em outra confusão: a do virtual ser o real. Ao se preocupar com o que o(s) outro(s) está(ão) fazendo – ou vivendo – os feeds viram uma mistura de janela, cardápio e abismo. São amores que não resistem às distâncias e também não suportam se transformar em uma maratona de pontes-aéreas. É a exploração de uma grande metrópole, um local em que por alguns momentos temos a gostosa percepção de anonimato.
Ao tratar de descobertas e redescobertas, em uma linguagem atraente e moderna, “Música para Morrer de Amor” chegará ao circuito comercial com força para arrebatar um público novo e desinteressado em narrativas empoeiradas. O mesmo acontecerá com “Alice Jr.” (2019), por exemplo. Explora com sua trilha sonora um mundo que os algoritmos do Spotify não conseguem alcançar – porque um algoritmo não sente. Quando amamos, tudo faz sentido. Mesmo que diga, perto do fim, consciente de suas limitações, que é um conto da burguesia branca (porém, gay).
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