Sinopse: Flávio perde seu apetite sexual editando vídeos pornô. José, seu marido, está tentando criar uma equação que determine quando os humanos colonizarão Marte. Flávio está focado numa viagem mais interna e José fica tentando achar maneiras de trazer o tesão de Flávio de volta. Enquanto isso, Hypnos, deus do sono e youtuber, tenta devolver às pessoas a arte de descansar.
Direção: Gustavo Vinagre
Título Original: Desaprender a Dormir (2021)
Gênero: Comédia | Experimental
Duração: 1h 36min
País: Brasil
Transes e Transas
Gustavo Vinagre, um dos realizadores mais ousados e corajoso do audiovisual brasileiro contemporâneo, aportou na quinta edição do Festival Ecrã com “Desaprender a Dormir“, longa-metragem filmado no contexto da pandemia de covid-19. Seguindo seu estilo libertador, os corpos por ali transitam em uma mistura de sonho real, transes e transam, que não abdica de explicitar, na subversão do outrora objetificado. Porém, vai além ao trazer as consequências do comportamento moderno e da relação de um ciclo de vida que não consegue desassociar prazer e trabalho e, em breve, consciente e inconsciente.
Quem acompanha nossos textos na Apostila de Cinema já percebeu que em algumas vezes mencionamos o livro de Jonathan Crary, “24/7: Capitalismo Tardio e os Fins do Sono“. Nele, em suma, o teórico diz que o último desafio da Humanidade é se livrar da dependência do sono. Mote parecido com o que o diretor traz em sua abordagem inicial. Inclusive com dados, que nos lembram que nos últimos dois séculos, nosso tempo de sono caiu quase pela metade. Somada uma ansiedade natural dos momentos de improdutividade, potencializado nos últimos meses pelo qual pouco saímos dos quadrados das nossas casas, a narrativa será centrada em um casal que, envoltos em seus ofícios, pesquisas e missões, identificam um esfriamento no relacionamento.
Flávio (Gustavo Vinagre) ainda tem um diferencial. Editor de filmes pornográficos, ele vê sua libido ser tentada e domada em prol do profissionalismo por horas a fio todos os dias. Já José (Caetano Gotardo) está mais distante de um ofício automatizado. Entre a pesquisa e criatividade, ele quer provar de maneira contundente que Marte é um território colonizável – porque na Terra do século XXI, em vias de se desfazer pelas ações destruidoras dos humanos, apenas chegar a um novo planeta não será o suficiente.
Gotardo, que também apresenta no Ecrã uma criação sua, “Você nos Queima” (2021), aparece duplamente como objeto dessas histórias. Compra as próprias ideias e a de outros talentos como Gustavo e se firma como um dos rostos, vozes e corpos mais importantes e representativos do Cinema Brasileiro atual. Seu José é, em parte, um alter ego, como podemos observar quando, em uma cena, ele grava uma ideia de história em seu celular – no que poderia ser um futuro filme de sua cachola ou de seu caixote.
Na relação do casal, aquele momento fundamental do café-da-manhã em que, como uma espécie de pauta, definimos o tom pelo qual o dia começa – e ele assim quase sempre permanece. Ali eles dividem as suas dificuldades em dormir e seus sonhos cada vez mais confusos e absurdos. Enquanto a busca por abolir o sono (ou tornar seu tempo útil) não traz resultados, vivemos o dilema e a culpabilização por esses momentos. Até que um youtuber, na mistura de vlog, ensaio e discurso meritocrático-gurusista, se propõe a ajudar seus inscritos a, apenas dormir.
Mais adiante, “Desaprender a Dormir” trará falas de algumas mulheres que expõem seus problemas e traumas, inclusive nossa relação com os sons dos espaços urbanos e uma cada vez mais crescente fuga territorial. Há, ainda, o registro do trabalho exaustivo de cam boys que demoram a se desconectar quando fecham os olhos para descansar. Outro cacoete visual e sensorial cada vez mais comum, de uma rotina dominada por telas, uma explosão de cores e sinapses que faz o sono parecer um salto de paraquedas.
Assim como o cinema de Fassbinder e outros expoentes do cinema libertário, Gustavo Vinagre nunca pecará por omissão. Até porque, a conceito de excesso é subjetivo e no meio de sequências escatológicas reais ou simulados e de sexo explícito, há aqueles que jamais acharão o suficiente. É mais um de seus filmes que não quer olhar para trás, deseja ser julgado pelas suas representações. Sob o manto do delírio ou do inconsciente, convidando o espectador a testar assuas percepções e seus limites, “Desaprender a Dormir” encontra uma cena final ainda mais poderosa e polêmica do que seu trabalho anterior.
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