Desterro

Desterro Crítica Filme Cinema Brasileiro Pôster

Sinopse: Uma casa está em chamas. Todas as casas. Uma viagem resulta em várias viagens e essa é sem regresso. Muitas mulheres falam. Contam suas histórias. A perda, a morte e a luta por ser, ao lado dos outros.
Direção: Maria Clara Escobar
Título Original: Desterro (2020)
Gênero: Drama
Duração: 2h 2min
País: Brasil | Argentina | Portugal

Desterro Crítica Filme Cinema Brasileiro Imagem

Deixar-se Consumir

É algo a ser evitado, mas há vezes em que o crítico acaba se tornando refém de algumas propostas das obras que deveria analisar – e falo “deveria” entendendo que cumpro um papel de mediador e não de autoridade, apesar de respeitar e reconhecer que essas autoridades existem. “Desterro” é um caso bem particular. A sinopse oficial, sem dúvida aprovada por alguém da produção ou a própria diretora e roteirista Maria Clara Escobar induz uma leitura sobre a narrativa. Ir muito além dela, em uma decupagem que o próprio diretor de fotografia Bruno Risas (que estreou na direção em longas-metragens com “Ontem havia Coisas Estranhas no Céu“) o faz de forma tão sintética, seria quase que usurpação de discursos.

Portanto, uma breve crítica – sem os espaços que um artigo extenso e referencial permitiria – elencando sequências e trabalhando aspectos de linguagem se tornaria mero virtuosismo literário, confrontando com a abordagem da própria cineasta. O filme que, nas inconsistências de um espaço-tempo próprio que o festival online com janelas de exibição confunde, encerra (de maneira aparente) nossa cobertura do Festival do Rio na edição especial da Première Brasil 2020. Faz com uma imersão que une o cotidiano e a aventureiro, o rotineiro e o excepcional. Sendo assim, para o espectador menos conectado com o cinema brasileiro contemporâneo, a sugestão é mergulhar – ou melhor, deixar-se consumir, já que a obra é mais fogo do que água.

Ao contrário de “Pequenos Incêndios por Toda a Parte”, em “Desterro” não há uma conexão ou comoção comunitária, de dramas familiares. Há muito silêncio e o sorriso aparece por “ouvir dizer”, na fotografia não aceita para a nova via do documento de identidade de Israel (Otto Jr.). Dividido em três partes, encaixadas de forma não linear, deixamos apenas o título da primeira, “Nós Somos os Mesmos“. Se nos versos de Belchior a comparação é com nossos pais e a forma como reproduzimos comportamentos quando a vida adulta bate à nossa porta, Escobar cria uma nova possibilidade ao mostrar que essas reproduções podem ocorrer dentro do mesmo ciclo de um relacionamento – enquanto que, da porta para a fora, há inúmeros rompimentos.

Interessante que Caetano Gotardo surge na contribuição ao roteiro e as cenas iniciais aqui remetem a “Desaprender a Dormir“, longa-metragem de Gustavo Vinagre por ele estrelado e assistido há algumas semanas durante o Festival Ecrã. Naquele texto falamos sobre como o café-da-manhã parece antecipar ou influenciar a forma como o restante do dia se desenvolverá. Para Israel e Laura (Carla Kinzo, também colaboradora do roteiro) ele aparece mecanizado, mesmo com a excepcionalidade do retorno às aulas do filho Lucas (David Lobo), que se mostra particularmente afetado com o fim das férias e sua saída do ninho.

No meio de diálogos pouco interessados, a dúvida sobre a diferença no tempo de ebulição da água. Transportando as relações familiares para a metáfora do preparo de um café, cada experiência sofre influência – não há nada hermético, mesmo que um casal se coloque dentro de uma bolha. A água sai do encanamento em temperaturas diferentes, a força do gás fornecido ou a potência do botijão – talvez a voltagem da chaleira. Assim como os fatos corriqueiros nos afetam de maneira diferente a cada novo dia. No caso de Laura e Israel, as cobranças dos pais dela por um registro oficial de casamento pode ser levado como piada ou como gatilho.

Aliás, como boa parte de nossas percepções atualmente. Escobar, então, nos entregará as consequências imediatamente após listar as causas – para que conclua na maneira como a tragédia do acaso se materializa. É possível que isso torne “Desterro” menos impactante conforme o tempo corre, até porque há algo de magnético naquelas conversas de um casal que demonstra tensão e desgaste quase que simultaneamente durante as refeições.

Devaneios sobre o fim do mundo, reflexões sobre arrependimento e uma notícia de um assassinato cruel que chega pelo rádio em um momento de celebração. Quando tudo isso se torna uma dolorida ausência e uma sofrida trajetória pelos meandros da burocracia, o longa-metragem ganha contornos de um romance em longos capítulos, com convenções próprias. Personagens que transitam em planos frontais para dividir outras experiências, os seus próprios incêndios.

Uma representação quase machadiana no ato final (que cronologicamente é o do meio), nos deixa pensando se aquela seria a primeira, a única ou a última aventura de Laura. Ou se foi mesmo uma aventura. Sua leveza ao dançar “Ana Maria” do Trio Odemina talvez seja o único momento em que sentimos alguém viver intensamente – e não tensamente.

Uma pequena libertação. Um pequeno incêndio. Uma pequena catarse. Um “Desterro” que valeu a pena para quem acha que não vale a pena viver se for apenas para se manter vivo. O fim do mundo como uma brincadeira ou como um gatilho.

Veja o Trailer:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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