Sinopse: Partindo do encontro do diretor com os protagonistas de um campo de refugiados, o filme acompanha o processo de adaptação de duas famílias sírias que, tendo deixado suas terras e tradições para trás, começam uma nova vida em um país distante do qual nada sabiam, chamado Uruguai.
Direção: Mariana Viñoles
Título Original: El Gran Viaje al País Pequeño (2019)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 46min
País: Uruguai
Churrasco Halal
Em “El Gran Viaje al País Pequeño” podemos identificar dois processos de mudança, ambos por forças incontornáveis. Sanaa é uma jovem síria que, com pouco mais de vinte anos, está em sua terceira gestação. Por conta da Guerra Civil que se estende há quase dez anos, seu marido aceita que sua família faça parte do grupo contemplado pela ajuda humanitária realizada a mando de José “Pepe” Mujica, presidente uruguaio à época. Cerca de 150 sírios, então, atravessarão o mundo com a promessa de construção de um novo futuro em terras latino-americanas.
Outro processo é o de concepção do filme pela diretora Mariana Viñoles, apresentado no quarto dia de programação do Festival de Gramado 2020. Por conta de acidentes de percurso sempre bem-vindos quando se produz um documentário, ela precisa alterar a rota de sua abordagem por mais de uma vez. A ideia é acompanhar aquelas pessoas desde a sua viagem até a adaptação ao novo país. Todavia, em virtude da ausência do cumprimento de algumas promessas pelo governo uruguaio, Sanna e Ibrahim, seu marido, não querem dar entrevista em uma das incursões da diretora na gravação do filme. A saída é suprir este vazio com uma fala de um dos representantes dos refugiados e nos apresentar um senhor, revoltado com o que tem passado na América do Sul.
“El Gran Viaje al País Pequeño” traz cenas imageticamente potentes. O maior exemplo é o desembarque quando, no aeroporto, Pepe Mujica pergunta a Sanaa se ela deseja lhe falar algo e é nítida a mistura de choque cultural e admiração pela forma natural com a qual lhe permitem o uso da palavra. Não se aprofunda tanto nas questões da sociedade uruguaia, mas fica claro quando saímos daquela redoma síria que – como era de se esperar – a aceitação de um grupo de estrangeiros, mesmo que refugiados de uma guerra brutal, pode ter o efeito contrário em parte da população, que desenvolve uma xenofobia inconsequente. Ainda mais em um território com suas próprias e graves mazelas.
Mujica, a despeito de todas as nobres intenções e por fazer questão de receber no aeroporto o grupo de sírios que se estabeleceriam no país, provocou em sua atitude a falsa sensação de que o Uruguai era uma espécie de terra das oportunidades. Ainda mais por ter população e extensão territorial bem menor do que os países vizinhos (Brasil e Argentina), destino mais procurado pelos sírios que fogem da guerra. A promessa de uma propriedade para aquelas famílias e a possibilidade deles terem seus próprios animais, incentivou muitos deles a optar pelo Uruguai. Ainda mais em uma cultura que não aceita o consumo de carne animal sem técnicas específicas de abate, que eles chamam de halal (que, em tradução livre, seria tradicional – em respeito às práticas do islamismo).
Não bastasse as dificuldades de se estabelecer em um país muito distante e que, além das grandes diferenças na sociedade tem poucos espaços simpáticos ao exercícios das manifestações religiosas e culturais dos novos moradores, esta questão em especial provoca ainda mais frustração aos sírios. Quando há essa mudança de foco no documentário, causado pela inviabilidade de uma entrevista, o filme acaba se tornando mais completo – e informativo, sem apelar para o didatismo. Só que Viñoles parece entender que isso não é o suficiente para sua obra e altera mais uma vez seu curso. Com isso “El Gran Viaje al País Pequeño” nos coloca dentro da comunidade. Sai a atitude ligeiramente inquisitorial da câmera e da diretora e entra um mergulho, uma simples divisão de espaço.
Mais a frente ela retornará com mais um testemunho direto – uma espécie de panorama final. Todavia, é nesta parte da produção que conhecemos, de fato, aquelas pessoas. Sem uma projeção de fala comum a quem faz um testemunho diante das câmeras, podemos perceber as dificuldades em se construir ideologicamente um novo conceito de lar. Em que tudo é diferente, até mesmo a água que bebemos. Além disso, a falta de perspectiva de retorno exige que o passado seja resgatado apenas como lembrança. Só que o que há de passado é toda a forma de vida antes configurada. No meio dessa adaptação da nova realidade há espaço para reunir as famílias em um churrasco, não sem antes fazer o abate de acordo com os preceitos islâmicos – na sequência mais sensível do longa-metragem.
Nesta busca por resposta, “El Gran Viaje al País Pequeño” entra em sua reta final com uma conversa entre um dos sírios e um senhor refugiado da Palestina. Ali eles admitem como imaginavam que a Primavera Árabe, ocorrida em 2010, parecia um prenúncio de uma revolução positiva para a região. A mesma ilusão que muitos brasileiros tiveram com as Jornadas de Junho de 2013, talvez. Momentos da História recente que ainda não sabemos explicar. Mais do que obter respostas diretas – tantos eles, quanto nós – gostaríamos mesmo é de entender. Saber, afinal, como chegamos até aqui.
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