Sinopse: “Em Meus Sonhos” é a história de Tarik, um menino de oito anos de idade que sofre um acidente de carro com a família. Seu pai acaba morrendo e sua mãe fica em coma no hospital. O garoto perde a memória e, sem outros parentes na cidade, é enviado a um vilarejo para morar com os avós. Ainda que não se lembre de nada, ele sonha constantemente e passa a criar uma conexão com um burrinho que perdeu a mãe em um acidente de carro na aldeia.
Direção: Murat Çeri̇
Título Original: Bir düş Gördüm (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 40min
País: Turquia
Engrenagens do Sentimento
No interior da Turquia, na região de Bolu-Gerede, permeada por uma estrada que liga a capital Istambul a Ancara, nasceu e passou a infância o diretor Murat Çeri̇, que apresenta “Em Meus Sonhos” na Competição Novos Diretores da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Sem a confirmação de ter o longa-metragem uma inspiração autobiográfica – tudo leva a crer que sim – somos apresentados ao menino Tarik, que recomeça sua vida após um acidente de carro onde seu pai falece e sua mãe permanece em coma no hospital.
Filmado em boa parte na própria província de Bolu, o cineasta quis transpor para a tela a escala de cores do pintor Caravaggio. Produzido pela emissora de televisão oficial do país, o resultado é uma obra mais vistosa em sua estética do que envolvente na questão emocional. A narrativa aplica na parte final da trama boa parte da carga sensorial, tornando o caminho o qual percorremos até ali chegar difícil, pela gama de personagens e constantes trocas de perspectiva.
Há uma relação do protagonista muito parecida com o filme “Crônicas do Espaço“, assistido há algumas semanas no 9º Olhar de Cinema. O uso de elenco infantil amador e a ideia de transformar a história em uma jornada de descoberta e maturidade são latentes. “Em Meus Sonhos” é mais apegado a uma narrativa tradicional, usando elementos básicos de correlação. A água que limpa e purifica, em uma visão religiosa daquela vilarejo é uma das formas. Çeri̇, entretanto, opta por viajar menos no que seriam as projeções feitas por seu protagonista. Tira a possibilidade de viajarmos pela tênue linha entre real e imaginado típica da idade, tirando de campo Tarik em diversos momentos.
Com isso, por vezes estamos diante de uma história de adultos, ainda que pelo olhar de uma criança. Talvez uma busca por referências do menino, ansiando por mimetizar algumas das ações. O filme ganha força mesmo quando vira essa chave, com pouco mais de um terço de projeção. Reúne um grupo de garotos para criar uma espécie de ritual masculino na área de campo aberto de Bolu. Subverte todas as convenções anteriores das sequências que se passam dentro da cidade, se permite ser lúdico e justifica as visões dos sonhos do personagem principal. Porém, mais adiante abre mão dessa transcendência pelo bem de uma lógica.
Acaba se tornando, de certa maneira, um pouco irregular. Interessante que a montagem do longa-metragem nos comprova que o caminho foi construído desde o princípio, sem ambientações desmedidas. Um diálogo visual a partir do cuidado de um burro (Saltitante) que une Tarik a Zeki, um homem que continua falando da esposa falecida como se viva estivesse e vira chacota na cidade. Aos poucos, o animal vai reunindo toda aquela comunidade e fazendo o protagonista esclarecer em sua mente a diferença entre abandono e morte, entendendo a ausência dos pais. Quem já viveu o trauma de uma perda mal resolvida (por vários motivos) do pai ou da mãe simpatiza ainda mais com as dúvidas que se transformam em dor na cabeça do menino.
Bem perto do fim, “Em Meus Sonhos” arremata essas proposições em uma conclusão sensível. Não é tão envolvente quanto narrativas similares de provocação emotiva, muito por conta desse jogo de visões que se alteram. Mesmo assim, uma bonita obra sobre a descoberta e a materialização do conceito de mudança, a partir da perda – caminho sem volta na trajetória de vida de cada um de nós.
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