Entrevista | Darío Doria
Forte e Insistente
A mistura de duas fortes linguagens dentro do audiovisual, o documentário e a animação, permite se unir por vários objetivos. Por isso chamou a atenção da Apostila de Cinema, assim que os selecionados do Festival É Tudo Verdade foram apresentados, uma das obras presentes na mostra competitiva de longas-metragens internacionais. O argentino “Vicenta“, dirigido por Darío Doria (leia a crítica de Roberta Mathias clicando aqui), conta uma história e abre um debate fundamental sobre o aborto na América Latina.
Mais do que isso, sobre como os direitos adquiridos não são respeitados, tornando ainda mais urgente a questão – já que buscamos sempre a ampliação de liberdades e garantias. Com isso, a experiência do filme não poderia deixar de ultrapassar a sessão. Convidamos o cineasta para responder algumas perguntas – não apenas sobre a temática de sua obra, mas sobre o processo de produção, que entregou um resultado final muito bonito. Um narrativa que sempre lhe interessou e que foi sendo moldada com o passar dos anos. Um projeto que ele sabia que não poderia deixar para trás.
Se ele diz que os fracos nunca desistem, dizemos a ele que sua força e insistência nos deu um dos grandes destaques da edição deste ano do festival. Enfim, vamos às palavras de Darío Doria.
Apostila de Cinema: Como foi sua aproximação com o caso de Vicenta e sua filha? Você chegou a acompanhar as notícias na ocasião ?
Darío Doria: A ideia de contar esta história, a de Vicenta e das suas filhas, vem de muito tempo, desde o momento em que os acontecimentos se desenrolaram e todo o país foi testemunha do que se passava a Vicenta e a sua família. Era inverno, em 2006, e lembro a indignação que tudo me provocava, o que a Vicenta estava passando em tribunais e hospitais e a cobertura que a mídia estava dando à história. Mas no dia seguinte em que todos nós soubemos ao vivo pela TV que a interrupção legal da gravidez pedida por Vicenta para sua filha não aconteceria, a história sumiu da mídia. Vicenta não era mais notícia, parou de se importar.
Foi o que aconteceu a partir daquele momento que me levou a querer fazer este documentário. O que se sabe, o que ficou no ar foi triste e desanimador, mas o que aconteceu depois, fora dos holofotes da mídia, foi o contrário. Não quero contar detalhes para não estragar, mas a história ficou maravilhosa, emocionante, esperançosa e foi então que soube que em algum momento iria fazer esse filme.
Apostila de Cinema: A legalização do aborto vem sendo discutida reiteradamente na Argentina chegando a levantar movimentos como o dos pañuelos verdes. Como você vê esses movimentos?
Darío Doria: É difícil para mim falar desses movimentos, da luta justa que as mulheres vêm travando há décadas. E é difícil para mim falar por respeito, porque sou um homem, e embora seja um fervoroso defensor da igualdade de gênero, em algum lugar faço parte desse patriarcado que nossos colegas lutam com tanta força e razão. Acredito que não tenho o direito de opinar, só posso acompanhar e respeitar a luta e suas justas demandas.
Apostila de Cinema: As cidades latino-americanas sofrem com o descaso e as desigualdades sociais. Como você acha que linguagens como o cinema podem ajudar a refletir sobre esse abismo social que é nossa realidade?
Darío Doria: Acredito muito no cinema, e mais ainda no cinema documentário como ferramenta transformadora. No início, com o meu primeiro filme, tive a ilusão de que ajudaria a mudar as coisas, a reparar injustiças. Com o passar do tempo e os filmes meus desejos seguem iguais, mas minhas expectativas são mais reais. Agora entendo que meus filmes podem, espero, ajudar um número muito pequeno de pessoas a refletir, e que é apenas um grão de areia na luta por um mundo mais justo e igualitário. Quando faço um filme, faço pensando em atingir um público que não pensa como eu, um público que, por exemplo, no caso da Vicenta é contra o aborto, e faço o filme pensando que ao vê-lo alguém pode se emocionar , podem ter empatia com o sofrimento dessa mulher e, assim, mudar um pouco seu olhar, sua opinião sobre o assunto.
Entrevista | Darío Doria
Apostila de Cinema: Uma das questões que perpassam o filme é a relação da cidade de Buenos Aires com a Grande Buenos Aires. Existe uma centralidade que atua em diversos níveis. Poderia falar um pouco sobre a questão urbana?
Darío Doria: Vicenta morava no que é chamado de terceiro anel dos subúrbios de Buenos Aires, e esses anéis são concêntricos com a cidade de Buenos Aires. A relação é simples, quanto mais longe você mora da cidade, mais pobre e difícil fica a vida. Pobreza endêmica, analfabetismo, violência, falta de serviços públicos básicos, ausência total do Estado. Infelizmente, nada que nós que vivemos na América Latina não saibamos.
Apostila de Cinema: Como foi a escolha pela animação? Inicialmente, quando a história chegou até você a ideia já era utilizar outros meios além dos registros de arquivo?
Darío Doria: Venho do cinema direto, de contar histórias que se passam no presente diante da minha câmera. Narrar algo que aconteceu no passado era novo para mim e eu não sabia como fazê-lo. A única coisa que ficou clara para ela é que não queria fazer um filme de entrevistas e material de arquivo, mas sim colocar o espectador ao lado de Vicenta para que sentissem o que ela vivia.
Pesquisei muito como fazer, tentei várias coisas que não funcionaram como eu queria, até que um dia me deparei com a bela obra de Mariana Ardanaz. Ela havia publicado em seu site a história de uma garota que vivia trancada em um quarto. Quando a vi, senti que essa menina de massinha poderia ser filha da Vicenta. Então entrei em contato com ela, conversamos e começamos a trabalhar juntos. Tentamos, tentamos e testamos até chegarmos a um teaser de cerca de quatro minutos onde ficamos empolgados com o resultado, usando essas bonecas de argila sem nenhum movimento. Já nesse teste incorporamos o material de arquivo em televisores de argila. Sabíamos então que a narrativa se sustentava muito bem naquela época, mas era um mistério que aconteceria em mais ou menos uma hora. Mas arriscamos, pulamos na piscina sem saber a profundidade da água e, felizmente, vários anos depois, saímos do outro lado molhados, mas muito felizes e contentes com o processo e o resultado.
Apostila de Cinema: A narração do filme também é bem particular e ajuda a criar uma ambientação importante para a experiência do espectador. Como você chegou a esse modelo?
Darío Doria: Se Vicenta funciona como filme, se consegue comover, se consegue fazer com que o espectador sinta em primeira mão o sofrimento desta família de mulheres, é graças à locução imaginada e escrita por Florencia Gattari, escritora de literatura infanto-juvenil. Foi ela, que numa estrutura narrativa, propôs esta voz off na segunda pessoa, raramente utilizada no cinema. Uma voz que ora fala com a Vicenta, dialoga com ela, ora fala conosco, espectadores. É a voz de quem gosta muito da Vicenta e das suas filhas, que compreende o seu sofrimento e admira a sua coragem e perseverança. Uma voz poética, próxima, escrita com força e doçura ao mesmo tempo.
Outro acerto na voz off foi a escolha da cantora Liliana Herrero. Se por algum motivo ela não pudesse ser a narradora, estaríamos diante de um grande problema, pois não tínhamos outra opção em mente. Era ela ou ela.
Ainda não sabíamos o que diria a narração, qual seria o texto, mas sabíamos que Liliana Herrero ia colocar essas palavras no corpo e na alma, com aquela voz impressionante que ela tem. Sintonia do interior, calor, força… Sabíamos que era ela desde o nascimento do projeto, quando este filme ainda era uma intenção. Até Florencia Gattari escreveu o texto levando em consideração sua voz, sua cadência, seu jeito de falar, também seu compromisso com a história da Vicenta.
Entrevista | Darío Doria
Apostila de Cinema: Como foi feita a pesquisa para o documentário? Houve uma pré-produção para que chegasse a questões específicas sobre a luta de Vicenta?
Darío Doria: Tudo, absolutamente tudo que Vicenta viveu naquela época está documentado. Basta pesquisar um pouco no Google para encontrar decisões judiciais de diferentes instâncias e organizações, notas jornalísticas, fotos, vídeos, áudios de rádio, etc. Existe até um livro editado detalhando tudo. Mas esse material explica os fatos e não as emoções. Podemos imaginá-los, claro, mas foi necessário que eu encontrasse Vicenta para conversar com ela sobre o que viveram. Conheci uma mulher muito feliz que não consegue falar daqueles dias sem ser invadida por angústias infinitas. Apenas tocar no assunto traz lágrimas aos seus olhos. Então, por respeito à sua dor, não nos aprofundamos nesse caminho e foi então que começamos a buscar outras formas de contar essa história.
Apostila de Cinema: Gostaria de deixar um recado para o espectador brasileiro?
Darío Doria: Há algumas palavras do escritor uruguaio Mario Benedetti que acho que respondem muito bem a essa pergunta: “Quem diria, os muito fracos nunca desistem“. É disso que se trata Vicenta, uma mulher que nunca desistiu.
Veja o Trailer de Vicenta:
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Entrevista | Darío Doria
Apostila de Cinema
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