Sinopse: Em “Era uma Vez na Venezuela”, sob os relâmpagos silenciosos do Catatumbo, existe uma cidade aquática chamada Congo Mirador, ao sul do Lago Maracaibo, o maior campo petrolífero da Venezuela. Lá, as pessoas se preparam para as eleições parlamentares. Para a líder chavista do povoado, Tamara, cada voto conta, e faz todo o possível para obtê-los. Para Natalie, timidamente oposta, a política é uma arma para tirá-la do emprego de professora. A pequena Yoaini observa sua comunidade ficar lamacenta com a sedimentação, e sua infância sendo dissolvida. Como pode uma vila de pescadores sobreviver à corrupção, poluição e devastação política?
Direção: Anabel Rodríguez Ríos
Título Original: Érase una Vez en Venezuela, Congo Mirador (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 39min
País: Venezuela | Reino Unido | Áustria | Brasil
Sem Segredo Sobre As Águas
“Era uma Vez na Venezuela” é uma ótima oportunidade para que os brasileiros, tão envolvidos em sua própria polarização política, supra a deficiência de conhecimento sobre uma nação vista como exemplo (de sucesso e fracasso), dependendo do espectro político pelo qual se assume. A diretora Anabel Rodríguez Ríos chega ao 30º Cine Ceará, na mostra competitiva ibero-americana de longas, com uma produção que vem fazendo uma interessante campanha no circuito de festivais. Não à toa, foi o escolhido de seu país como representante no Oscar 2021. Exibido em Sundance, em Toronto e no Hot Docs, não deixa de fazer uma abordagem que os críticos ao regime chavista terão especial interesse. Porém, a forma como a cineasta se coloca – quase como em uma mediação audiovisual – torna essa obra relevante independente do “lado” o qual você simpatiza.
Como uma confluência do destino, o filme foi assistido no início de uma semana que terminará com eleições para o parlamento venezuelano. Uma movimentação que a mídia brasileira ignora (ao contrário das cem horas de transmissão ao vivo dos canais de notícia durante a escolha Trump x Biden). O filme de Anabel usa o microcosmo de Congo Mirador (a capital mundial dos relâmpagos, de acordo com a Nasa), uma comunidade à beira do lado Maracaibo, para trazer um capítulo fundamental nesse embate político que o país vive na última década. Localizado em uma região rica de petróleo, parte dos moradores parecem não se importar com a situação de vulnerabilidade pela qual vivem, em precárias casas de palafitas. Aqui, a diretora já demonstra que a mediação imagética será seu mote. Tamara é mostrada como representante (e fã inveterada) de Hugo Chavez. Lê Nicolás Maduro como um legado, quase que messianicamente imputado pelo falecido líder.
Em outros momentos de “Era uma Vez na Venezuela” mostrará que o ex-presidente parece, de fato, estar vivo. Nessa lógica, os opositores do governo, naturalmente e por conta de sua duração no poder, foram ampliando suas forças. Eles aqui são representados por Natalie, a professora da comunidade. Como setor de base de qualquer regime socialista, os profissionais da área de educação são organizados de acordo com o interesse estatal. Assim como a distribuição de recursos. Ela, então, lê sua situação como uso político das atribuições, por conta das ameaças de transferência que recebe. Fiel aos seus ideais, ela continua abordando a polarização como assunto consumado na sua sala de aula.
A mediação da diretora do filme é percebida na forma como a escola é retratada (à primeira vista, bem equipada em comparação até com centros urbanos mais abastados no Brasil). Não estamos diante de um filme pró-governo, nem perto de uma peça de propaganda – e mesmo assim é possível absorver fatores positivos. A população de Congo Mirador, entretanto, convive com um território marcado pela sedimentação da água, cansados de se adaptar a essa intempérie e querendo o progresso que a extração do ouro negro lhe proporcionaria. Não há uma pluralidade de depoimentos, Rodríguez Ríos aceita a narrativa da tentativa de compra de votos da eleição que seria um marco pela derrocada do chavismo.
Porém, é importante fazer a leitura de obras como esta. Falar de um assunto, principalmente relacionado a política internacional, com propriedade. Há momentos em que o longa-metragem explora um pouco mais aquela sociedade, principalmente em uma festa onde o sonho de ascensão social nos populares concursos de miss (e a Venezuela tem tradição nos últimos anos). Uma visão diferente da nossa e que merecia até outros aprofundamentos. Todavia, o foco no período eleitoral não deixa tanto espaço.
Se há uma mensagem mais perene em “Era uma Vez na Venezuela“, é a de que só uma comunidade sabe, realmente, o que é melhor para ela. As conexões, alianças e debates precisam ocorrer no centro daquele espaço. Na construção de documentários desta natureza, é fácil seguir um caminho apolítico, daqueles que renegam qualquer exercício de cidadania sob a desculpa de que poder e corrupção andam juntos. O que Anabel faz aqui é justamente o contrário. Há uma especial predileção pelo fomento destas práticas. A promessa da chegada de dragas que melhorariam a situação dos moradores da localidade e até mesmo o oferecimento de dinheiro em troca de votos são algumas das práticas que tornam o ambiente de uma eleição bem mais improdutivo do que deveria ser.
Talvez por isso, mesmo com esse objetivo na obra, a montagem tire essas discussões do foco antes da primeira metade. De início, ele é bem mais antropológico, as personalidades dos poucos testemunhos mais assertivos são trabalhadas. Essa forma de expressão é fundamental para que grandes festivais do hemisfério norte tenham recebido tão bem o filme. Quando finalmente o espaço público, a realpolitik ganha a tela, ela vem com um poder de síntese muito maior. Como avançar em questões que extrapolam o vital (como o recebimento de telefones pelo governo) quando faltam necessidades básicas para o povo?
A diretora quer marcar “Era Uma Vez na Venezuela” como o registro do último evento democrático de seu país. A dissolução da assembleia a convocação de novas eleições no ano seguinte foi interpretada como um golpe. Domingo, esta grande nação latino-americana voltou às urnas, novamente sem observadores internacionais (mesmo que representantes de partidos e pesquisadores de todo o mundo, inclusive do Brasil, tenham se deslocado para lá a fim de acompanhar os desdobramentos). Nos dez minutos finais, retornamos em outro momento para Congo Mirador e fica a dúvida sobre em que momento um regime ou sistema de governo – e também um espaço ou um território – já não nos serve mais. Porém, somente o diálogo é capaz de fazer remoções (e transformações) sem novos traumas.
Veja o trailer:
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