Leia a crítica de “Eu me Importo”, estreia da semana na Netflix.
Sinopse: Uma corrupta curadora legal tenta dar um golpe na pessoa errada e acaba encontrando uma cliente à sua altura.
Direção: J. Blakeson
Título Original: I Care a Lot (2020)
Gênero: Thriller | Crime | Comédia
Duração: 1h 58min
País: EUA | Reino Unido
A Prosperidade
“Eu me Importo” chega nesse dia 19 de fevereiro na plataforma de streaming Netflix com uma indicação a Rosamund Pike por melhor atriz de comédia ou musical no Globo de Ouro de 2021. Por mais que a associação de correspondentes estrangeiros tenha perdido a relevância há muito tempo na chamada “corrida ao Oscar” (e a ausência da protagonista entre os lembrados pelo SAG diminuam suas chances de repetir o feito de “Garota Exemplar” há seis anos), o registro da boa performance de Pike merece ser destacado. O filme é uma forma de revistar as narrativas de anti-heróis, que saem da zona de conforto de uma vida burocrata para se transformar em figuras de ação, mesmo que de forma acidental – movidos pelo instinto de sobrevivência.
Marla Grayson é uma curadora profissional. Comanda um escritório próprio para administrar interesses de pessoas idosas que, segundo laudos médicos por vezes duvidosos, foram interditados pela justiça – algumas até contra a vontade da família. Ela vê uma oportunidade de construir uma carreira estável, em que fixa seus próprios honorários e comissões em cima da dilapidação do patrimônio daqueles que ela, ironicamente, diz “se importar muito”. Um debate interessante do uso das vidas como produtos e o envolvimento de pessoas da terceira idade em um verdadeiro balcão de negócios. O diretor J. Blakeson (em seu terceiro longa-metragem, o primeiro depois do mal recebido “A 5ª Onda“, de 2016), entretanto, começa usando um artifício até muito comum para o gênero no qual o filme aparentemente se encaixa.
Quebrando a quarta parede, na narração da protagonista, “Eu me Importo” convenciona que destruirá a ideia de uma ética meritocrática, que vincula a prosperidade financeira ao trabalho e o respeito aos outros. Marla é uma figura que transita por espaços com objetivos específicos e toda a construção de imagens comunga para essa sensação.
A maquiagem e cabelos de Pike é creditada de forma exclusiva a Robert Frampton (embora o filme mencione Lori Guidroz como coordenadora do departamento) e suas expressões são alguns dos elementos que, na parte inicial da história, mais chamam a atenção. Junto à figura asseada da personagem, o cabelo perfeitamente alisado em uma audiência importante denota logo o pragmatismo daquela agente. Mais adiante, quando ela encontrar Jennifer Peterson (a veterana Dianne Wiest que, mesmo com pouco tempo em cena, faz um trabalho igualmente incrível), as ondulações de seu corte curto já trazem um frescor, uma modernidade, um desapego – aliado aos tênis brancos, que terão importante função quando a aventura avançar. Quando ela precisa demonstrar maturidade (ou até mesmo uma bondade inquestionável), ela opta por prendê-los.
Todavia, essa expressividade de figurino e penteados não levaria a lugar algum se o longa-metragem não encontrasse seu ritmo. Poderia se tornar um compilado de referências e análises curiosas, como o contraste do vermelho predominante no escritório de Marla e do azul na casa de Jennifer (e como a curadora insere o azul em suas roupas e pequenos objetos para materializar a expectativa de grande lucro por trás do novo golpe). O que acontece aqui vai além, Blakeson encontra uma maneira de aumentar a voltagem, ampliar a tensão, sem apelar para subversões de lógica ou inversões de elementos espaço-temporais que vem fazendo grande parte das narrativas do cinema comercial. Desta forma, evita-se aquela salada de sempre, que usa a confusão do público como premissa.
Entender a personagem de Pike enquanto alguém obcecada pelo sucesso e desinteressada em princípios é o suficiente para comprar tudo o que ela fará para se manter viva – e bem. A entrada de Roman Lunyov na trama, filho mafioso que não pode lutar diretamente pelos direitos da mãe, é daqueles gostosos antagonismos que nos coloca em um filme no qual ninguém, de fato, merece nossa torcida (assim como boa parte da filmografia dos Irmãos Coen). Peter Dinklage (o inesquecível Tyrion Lannister de “Game of Thrones“, pelo qual ganhou um Globo de Ouro de 2012) tem a química perfeita com Rosamund nas sequências em conjunto.
Há uma dose de absurdo e deboche em “Eu me Importo” que vai nos movendo sem cansar ou sobressaltar até a fase em que a ação tomará conta. Já Wiest (vencedora de dois Oscars como coadjuvante: por “Hannah e suas Irmãs” (1987) e “Tiros na Broadway” 1995), como dissemos, atua como uma ferramenta da história, tal qual sua Jennifer. Todavia, quando lhe dão espaço, ela brilha. Um exemplo é o primeiro diálogo dela com Marla, um tiro no escuro das duas mulheres, que pessoalmente se atingem e ampliam a tensão.
O protagonismo feminino tem na união com Fran (Eiza González), inseparável companheira da curadora, o elemento sentimental perfeito para o equilíbrio – formando um suspense que nos envolve cada vez mais. Além disso, a todo instante reforça-se a atitude da personagem, de afirmação enquanto mulher que não admite ser ultrapassada ou deixada para trás por quem quer que seja – mas sabe o quanto dói nos homens quando eles identificam essa determinação por parte dela. Quando a crise de Marla encontra sua fase mais aguda, o longa-metragem se transforma em um thriller e a música incidental de Marc Canham toma conta das cenas – nos deixando em alerta máximo. O cineasta consegue entregar ao público uma trama carregada de violência sem usar exageradamente esse artifício narrativo. Tudo o que se agrava na obra é apresentada de forma crescente, é um desenvolvimento em conjunto – justificando, inclusive, a permanência da trilha sonora quase todo o terço final da projeção.
A participação do advogado Dean Ericson (Chris Messina) e seu terno listrado exagerado, típico de um representante da máfia, nos faz referenciar em nossa mente a figura de Saul Goodman (Bob Odenkirk), personagem que iniciou sua trajetória na série “Breaking Bad” (2009-2013) e seguiu em “Better Call Saul” (2015-2020). Todavia, essa não é a única vinculação de “Eu me Importo” com esses produtos televisivos. Há uma proximidade narrativa, usando uma série de acontecimentos improváveis com alguém que peca pela ganância, que tem feito sucesso junto ao público contemporâneo e o fenômeno que fez milhões acompanharem as agruras de Walter White é um pouco paradigmático nesse sentido – e perfeito para uma sociedade cada vez mais individualista (e que tem prazer em assistir arcos de quem se vende, se corrompe – e muito mais – para prosperar).
Há quem não se agrade com o epílogo que apela para o moralismo ou uma punição ética – comum a todas essas obras, por sinal. Porém, a jornada até esse ponto é tão envolvente, que torna “Eu me Importo” uma ótima opção nos pretendentes aos troféus da indústria em 2021.
Veja o Trailer: