Sinopse: Em uma visita ao Museu de Belas Artes de Leipzig, meninas são convidadas a compartilhar suas observações sobre as obras em exposição. Em “Garotas | Museu”, do dispositivo aparentemente simples, emerge um conjunto perspicaz e heterogêneo de ideias que não apenas relançam discussões historicamente caras à crítica feminista, como desafiam nossos olhares adultos a também enxergar o mundo por novos ângulos. O que as garotas veem quando vão a um museu? Como a história da arte, conforme narrada pelos espaços institucionais, pode ser revista através de suas perspectivas?
Direção: Shelly Silver
Título Original: Girls / Museum (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 11min
País: Alemanha
Novas Cabeças
Quando começou a sessão de “Garotas | Museu“, parte da mostra Outros Olhares do 10º Olhar de Cinema, uma expressão repetida de forma insistente no curta-metragem brasileiro “Afeto” (2019), de Gabriela Gaia Meirelles e Tainá Medina, me veio na cabeça. Por sinal, a expressão é, não ironicamente, “cabeça de homem”. Talvez porque a obra, que procurava tratar do apagamento feminino nos monumentos e arquitetura das cidades, tenha sido revisto em algumas oportunidades e se tornou uma referência constante nas experiências que resgatam questões parecidas dali em diante.
No documentário, a experiente cineasta norte-americana Shelly Silver fixa suas atenções nas jovens visitantes da ala de Belas Artes do principal museu de Leipzig, na Alemanha. Começando por caminhos que tratam da mulher na publicidade, ela não cria nada tão performático quanto o “cabeça de homem” já citado. Porém, nas falas das personagens que ela encontra, um leque de apontamentos sobre representatividade e a permanente invisibilidade feminina nesses espaços são colocados na nossa frente, com a mesma frontalidade das imagens que ela capta dos depoimentos.
Em conversa com Camila Macedo e Leonardo Bomfim no canal oficial do festival – e que você assiste ao final da crítica – ela fala da total liberdade que teve junto aos responsáveis pelo museu. Permanecendo ali o tempo que quisesse, ela pode colher boa quantidade de discursos e conseguiu, na montagem final, misturar um pouco da cronologia das História da Arte desde o século XVI com recortes temáticos que surgem naturalmente nas obras de maior simbolismo.
Veja o Trailer:
Começando com uma visão de Lucas Cranach de 1533 sobre a história bíblica do pecado original, as jovens de “Garotas | Museu” observam que a mulher possui uma representação como ser mais perigoso do que a própria serpente que oferece a maçã. Pedra fundamental para questionar os reflexos de séculos dessa construção religiosa de culpabilização feminina na contemporaneidade. Soma-se a essa assertiva o uso de folhas cobrindo o sexo e o tabu imposto pela ideia de vincular sexo ao pecado.
Por mais que o filme seja uma colagem de encontros com aquelas meninas, algumas mais empolgadas em dividir suas impressões e outras sendo apenas reativas, a experiência de Silver encontra certa fluidez. Leva a obra para o caminho da dogmática por trás das representações, a objetificação do feminino e a proteção do masculino e a estética do belo, quase sempre amarras da arte eurocêntrica que, não podemos esquecer, permanecerá dominante naquele território. Há em outras partes do mundo um processo de desconstrução que deve ser equilibrado para que a reafirmação que surge nesses espaços não se descaminhe para uma guerra cultural desarmônica.
O olhar crítico das personagens não impede que algumas frustrações sejam percebidos pelo espectador (e confirmadas pela cineasta) na conclusão. Shelly oferece exercícios sobre quais daquelas mulheres elas gostariam de ser, por exemplo. Deixa algumas comentarem a obra sem saber se foi criada por um homem (quase sempre) ou uma mulher (ainda rara exceção). Deixa que elas pratiquem um pouco de inocência, para que tracem paralelos com a atualidade, principalmente relacionada à exposição de nossas figuras e corpos em constante julgamento.
É nesse ponto que “Garotas | Museu” traz algumas surpresas. Como a própria realizadora fala, esperava-se que a liderança feminina de Angela Merkel a levasse a encontrar uma Alemanha com muitas meninas projetando ter o poder nas mãos. Até que elas seguem o caminho mais tradicional – e podemos até dizer conservador – de propor soluções específicas para aqueles espaços, relacionando igualdade à forma como as curadorias ocupam aquelas galerias. Todavia, o que talvez seja frustrante para Shelly Silver, ainda soa bem emblemático para um público acostumado às cabeças falantes dos homens.
Assista à conversa entre Camila Macedo, Leonardo Bomfim e Shelly Silver sobre “Garotas | Museu”: