Sinopse: “Girimunho” traz a rotina de Dona Bastú, uma senhora que acabava de ficar viúva. Ela, portanto, tenta superar uma existência que parece se repetir, como se o tempo não andasse, usando como ferramentas os sonhos e as batidas do tambor ao lado e Dona Maria do Boi.
Direção: Clarissa Campolina e Helvécio Marins Jr.
Título Original: Girimunho (2011)
Gênero: Drama
Duração: 1h 30min
País: Brasil
Quando a Abstratividade do Tempo Salta aos Olhos
Estava no Odeon no dia 8 de outubro de 2011, quando “Girimunho” foi apresentado em pré-estreia de gala durante o Festival do Rio daquele ano. Fui no final da tarde assistir “Um Método Perigoso” (2011), que já possui certa quebra de expectativa para quem imagina um filme de David Cronenberg – mesmo que seus anteriores tivessem uma narrativa mais tradicional, carregando apenas na violência. Lembro que Pablo Villaça estava na fileira de trás e essa foi a única vez em que vi pessoalmente o popstar da crítica. Estiquei a noite para prestigiar o cinema brasileiro. Mas inesquecível, mesmo, foi o apagão que deixou quase o país inteiro sem luz dez minutos depois de iniciado o longa-metragem dirigido por Clarissa Campolina e Helvécio Marins Jr.
Fui um dos dois terços dos presentes na Cinelândia que aguardou a volta da projeção. Nunca mais revi “Girimunho” e o revisitei após escrever sobre “Querência” (2019), obra de Helvécio apresentada em pré-estreia no Festival Espaço Itaú Play. Antes mesmo de buscar essa notícia linkada no parágrafo abaixo, já tinha me dado conta de que eu fui um dos muitos que não conseguiu imergir na linda história trançada por Campolina e Marins, em roteiro de Felipe Bragança. O primeiro trabalho dos cineastas – que venceram na categoria de estreantes do Havana Film Festival, além de serem selecionados para a mostra paralela Orizzonti do Festival de Veneza – é mais uma produção que reafirma a abstratividade do tempo (e passo a abandonar a primeira pessoa).
Só que, aqui, vamos além: não apenas se valeu para ressignificar um olhar sobre o longa-metragem, como também para ratificar a sensação de que o mundo que existia antes de março acabou. O filme, que possui a temporalidade como elemento fundamental, ganha novos entendimentos quando rememorado um conceito de existência que permitia a experiência imersiva lá do Cine Odeon, aquela partilhada com centenas de pessoas, em que tanto a edição quanto o design do som (premiados em festivais) foram especialmente pensados. O “Girimunho” que reencontramos em 2020 depende ainda mais de sua empatia e de sua capacidade de se relacionar com um produto audiovisual.
Um prólogo potente – aquele que causou estranhamento na pré-estréia de quase dez anos – usa a luz da noite para destacar os sons, notadamente o do tambor. Na sequência, o único fato que podemos dizer transformador do plano da existência como tradicionalmente pensado: a viuvez de Dona Bastú (Maria Sebastian Martins Alvaro). Após isso, a produção se mostra um slow movie que não sentiu o peso da década em que tantos experimentalismos nessa visão de cinema permitiu. Campolina e Marins não levam às profundezas essa ideia de suspensão do tempo. Usam o curso dos rios, nas marolas de sua superfície, para compor cenas com uso de múltiplos planos, muitos de curta duração. Uma documentação que fornece informações pulverizadas, deixando para o espectador o prazer da decupagem e da edição.
Essa sensação de não-alteração do tempo permite que o longa-metragem, olhado em perspectiva, pareça, de fato, um montagem de escolhas. Por vezes há a sensação de que é possível dissociar uma sequência da imediatamente anterior ou posterior – reconectando a outra parte. Dona Bastú, de certa maneira, busca um norte – idealizando sentidos na inafastável sentença de que verá o tempo passar. É o mesmo processo que milhões (bilhões?) passaram nas últimas semanas – de medir, pelo mesmo um pouco, situações em que podemos aplicar conceitos como “importância” e “relevância”.
Não apenas dentro de casa, mas também fora. Poderíamos ir adiante nesse tema, mas a obra de Campolina e Marins tem as suas provocações próprias. Vale muito revisitar esse filme, que surge com destaque em importantes festivais pelo conceito subjetivo do tempo. Uma ideia (ou até mesmo um ideal) de produção que passou a ser perseguido ao longo da década de 10. Em paralelo, toda essa filmografia entra na nova década com um novo significado, sendo novamente “Girimunho” uma boa porta de entrada para quem entende que as percepções sobre o audiovisual enquanto projeção de experiências ganhou um novo significado. Consequência de uma realidade em que, à primeira vista, quase tudo o que não envolva as áreas comuns dos nossos condomínios ou a vista do meio-fio de nossas casas, pareça extremamente ficcional.