Sinopse: “I Comete – Um Verão na Córsega” se passa em uma pequena vila na Córsega, onde crianças iluminam as ruas, adolescentes ficam à toa, adultos discutem o futuro, enquanto os mais velhos refletem sobre a passagem do tempo. Quem nunca saiu de lá recebe de volta os que foram para o exterior. Familiares e antigos amigos compartilham esse momento único nas montanhas. Sob o sol escaldante e ao som de risadas agitadas, o verão suspende o tempo, mas não cura todas as feridas.
Direção: Pascal Tagnati
Título Original: I Comete
Gênero: Drama
Duração: 2h 7min
País: França
Retrato de uma Ilha Sem Chamas
“I Comete – Um Verão na Córsega” talvez seja a comprovação de que certas formas de leituras de uma sociedade precisaram se atualizar para que parte do ranço etnocentrista pudesse ser dirimido. A obra, parte da Competição Novos Diretores da 45ª Mostra SP, é o típico filme que usa a narrativa em caleidoscópio (ou mosaico), para nos levar à ilha do Mediterrâneo controlada pela França – e que esteve há poucos dias aqui na Apostila de Cinema quando falamos das táticas etnocidas de colonização mencionadas no documentário “Nós” (2021), que encerrou o 10º Olhar de Cinema.
O longa-metragem de Pascal Tagnati, vencedor do prêmio especial do Júri do Festival de Roterdã de 2021, parecia nos levar por um gênero que tanto a Literatura quanto o Cinema consagrou nos últimos séculos. A ideia de uma nau dos insensatos já foi usada por Robert Altman, Paul Thomas Anderson e até como base de uma produção do mesmo nome, que Stanley Kramer lançou em 1965 com grandes nomes no elenco, como Vivien Leigh e Lee Marvin. Todavia, no roteiro do próprio Pascal, rompe-se com a ideia de ser uma história de observação pelo viés das imperfeições, como se o espectador se debruçasse de forma exotizante naquele território.
Algo impensável há alguns anos, ainda mais com a oportunidade de representação de um lugar paradisíaco como a ilha na qual se localiza a vila. “I Comete – Um Verão na Córsega“, então, nos apresentará toda sorte de dinâmicas sociais, envolvendo crianças em início de férias, jovens e suas descobertas e adultos e seus dramas e amores Alguns nunca saíram da ilha, outros vão e voltam e mais alguns migraram para lá. Sem que seus diálogos potencializem características, segue a fluidez comum de um gênero que, em uma antropologia ficcional, costuma resultar em filmes interessantes. Por mais de duas horas o público vai identificando universalismos ou vínculos territoriais que muito ou pouco nos diz.
A contemporaneidade surge, por exemplo, no sexo à distância, no qual se rompe a barreira do voyeurismo com o observador controlando à distância um aparelho de masturbação. O tipo de interatividade que reformulou parte das nossas experiências audiovisuais, cada vez menos passivas e dividindo atenção com outras informações. O cineasta usa bem as imagens e as particularidades de seus personagens para nos ganhar. Com isso, vai abordando temas de várias ordens, desde a questão envolvendo a soberania daquele espaço até laços familiares.
Unindo esses dois exemplos uma das sequências mais curiosas do longa-metragem. Em uma cena, uma senhora começa a fazer uma extensa explanação sobre diversos assuntos para o neto – e assim continua, mesmo depois que ele vai embora. Em um tempo no qual produzimos discurso todo o instante, pouco nos importando o quanto e para quem ele reverbera, aquela avó na cadeira, sozinha, é uma agente tão importante quanto qualquer outro cidadão na rua, interagindo no filme. Nessa ruptura da ideia de uma nau dos insensatos ou da narrativa em mosaico, Tagnati também não vê a necessidade de demarcar o clímax de sua obra com uma situação-limite, um evento catártico.
Se pensarmos em um audiovisual que assume, cada vez mais, um olhar híbrido sobre ficção e documentário, “I Comete – Um Verão na Córsega“, ao trazer o cotidiano sem exigir dele mais do que isso é mais próximo do cinéma vérité do que de construções épicas que ousam mergulhar na natureza humana. Aliás, o fato de ser verão o aproxima mais de Jean Rouch do que de Robert Altman. Talvez seja o tipo de representação que precisamos em meio a tanta verborragia, representações dinamizadas de imagens e intensos discursos que se empilham sem que seus criadores possam ouvir o outro – e nem mesmo se ouvir. Tudo soa hoje como gritos de silêncio. Ao nos colocar em uma exposição de quadros incompletos entendemos um pouco o quão carente estamos de saber mais e projetar uma realidade que não a nossa.
Veja o Trailer: