Irmãs Sheppard: Das Ruas ao Pódio

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Sinopse: O documentário “Irmãs Sheppard: Das Ruas ao Pódio” mostra a história de três irmãs com muito talento para o atletismo que, sem ter onde morar, enfrentam a pobreza e a pressão de uma grande competição juvenil internacional.
Direção: Corinne van der Borch e Tone Grøttjord-Glenne
Título Original: Sisters on Track (2021)
Gênero: Documentário | Esporte
Duração: 1h 36min
País: EUA

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Correndo da Regra

No mês das Olimpíadas de 2020 (que acontecem em Tóquio em 2021 com uma falsa proposta de volta à normalidade colocada pelo hemisfério norte, ignorando que a pandemia de covid-19 está em curso), os noticiários começam a ser inundados de histórias de superação. Apesar de amar esportes e não ter problemas com o fuso horário, confesso que os Jogos deste ano devem ficar em último plano, não apenas porque teremos dois festivais de cinema (Ecrã e do Rio) e todos os outros compromissos pessoais e profissionais mais urgentes do que a competição.

Por isso, talvez “Irmãs Sheppard: Das Ruas ao Pódio” traga um pouco do olhar crítico sobre essas narrativas na direção da holandesa Corinne van der Borch e da norueguesa Tone Grøttjord-Glenne, radicadas no Brooklyn, Nova Iorque após concluírem seus estudos em audiovisual nos Estados Unidos. É justamente neste bairro que moram as três irmãs Sheppard: Rainn, Tai e Brooke. Se destacando ainda pequenas em um projeto social que forma atletas de corrida, elas ganharam holofotes após sua treinadora levar a situação da família para a mídia.

A mãe das meninas, sem emprego, não conseguiu manter o pagamento em dia do aluguel e elas foram morar em um abrigo para vulneráveis. Mantendo o sonho de  ascensão pelo esporte, elas circularam por programas de TV com viés assistencialista (como o The View, apresentado, dentre outros, por Whoopi Goldberg), até virarem capa da importante revista Sports Illustrated. Enquanto linguagem, o documentário traz a abordagem moderna dos reality-shows norte-americanos, como “Jovens e Mães“, exibido no Brasil pela MTV. Reúne observações de rotina, com depoimentos-âncoras e algum espaço para a produção de conteúdo pelas próprias personagens.

Enquanto mensagem, o que há ali, apesar dos aplausos merecidos para os envolvidos, em nada difere da busca pela meritocracia típica de um país que decide não atacar o problema porque a parte de seu sucesso é vender uma solução. Como representante mais bem-sucedido do Capitalismo, os Estados Unidos finca suas raízes em uma sociedade desigual – e precisa de edificantes exemplos de “exceções” para que todos os outros aceitem ser regras.

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O que torna “Irmãs Sheppard: Das Ruas ao Pódio” mais interessante é que sabemos desde o início se tratar de uma obra aberta. Hoje as meninas são adolescentes e o eventual sonho olímpico (se ainda existir) ainda não pode ser realizado. Os créditos finais dão algumas pistas de seus destinos. O que encontramos no filme é parte da sistemática que fez do país uma potência esportiva, ao tornar a prática dessas atividades mais do que um hábito, uma possibilidade de trampolim para aqueles não se inserem nas bolhas privilegiadas.

Desta maneira, o projeto em que as garotas participam exige a matrícula e o bom desempenho na escola. Ali temos o primeiro passo de uma trajetória que poderá levá-las às universidades com bolsas integrais a partir de coeficientes, assiduidade e, claro, o atletismo. Essa ideia de não abandonar os estudos (e com boa performance) difere um pouco da ideia de que o talento é a “única” saída. Apenas o talento não basta, seja nas artes, esportes ou até em atividades acadêmicas – se não for acompanhada de disciplina. Por outro lado, ao evitar ações paternalistas e estimular a competitividade, essa sistemática da sociedade norte-americana gera uma pressão.

A ausência da figura paterna, o futuro fora do esporte (Tai, por exemplo, gostaria de ser também bioquímica) e a chegada da adolescência e as implicações no corpo feminino; são algumas das questões que vão se tornando menos acessórias com o passar do longa-metragem. Isso faz com que ele vá para além da ação esportiva, da busca pelo melhor tempo, premiações e bolsas de estudo concedidas pelo desempenho. Mesmo que o aspecto humanitário do filme se baseie na leitura assistencialista da mídia hegemônica atual, as cineastas nos provém meios de irmos além das reações demarcadas e extremas: não há tanto o que celebrar na superação contra uma comunidade que te esmaga, mas ao mesmo tempo não precisamos deslegitimar os feitos da família.

Nos envolvendo com o passado que guarda um episódio de violência e aceitando as punições àquelas que entregam boletins com notas menores ou críticas ao seu comportamento, acabamos nos tornando parte daquela estrutura. A vida da mãe é bem menos explorada, mas quando ela aparece, sua fala é carregada de consciência – principalmente no que diz respeito ao fator econômico. Já o racismo estrutural aparece de forma direta apenas uma vez em “Irmãs Sheppard: Das Ruas ao Pódio“. Acontece quando uma delas não consegue uma vaga em Stuyvesant, em um conjunto habitacional no east side de Manhattan, no que sua treinadora lhe mostra: dos 395 classificados, apenas 7 são negros (menos de 2%).

Isso faz com que elas naturalizem a ideia de que a vitória nem sempre virá. Por trás de toda a pressão por resultados – dentro e fora das pistas – há uma comunidade que quer vê-las como mais uma exceção, na tentativa de formar um futuro em que elas sejam a regra. O atletismo é apenas uma dessas possibilidades.

Veja o Trailer:

 

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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