Leia entrevista com Joyce Prado, diretora de “Chico Rei Entre Nós”
Esse conteúdo faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Clique aqui e leia todas as críticas e entrevistas realizadas durante o evento.
O Reinado de Joyce Prado
Joyce Prado nos deu a honra de iniciar uma nova forma de produção de conteúdo aqui na Apostila de Cinema. Nas dinâmicas de festivais que se sobrepõem, no desejo de assistir ao máximo de produções ao redor do globo que nos atrai – e escrever sobre elas – nossas conversas em vídeo e podcast ficaram para trás por algum momento. Por isso, tivemos a ideia de resgatar a forma mais direta de conhecermos mais sobre produções e realizações: traçando perfis a partir de entrevistas.
Participando da Competição Novos Diretores da 44ª Mostra Internacional de São Paulo, ao mesmo tempo que se apresenta como filme de encerramento do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, o documentário “Chico Rei Entre Nós” é um exemplo de como o audiovisual representativo deve – e merece – ocupar todos os espaços, para além daqueles que ele mesmo cria. E Joyce é um exemplo de profissional que faz esse trânsito, não apenas em defesa de sua produção, mas nas várias expressões de sua carreira.
O longa-metragem inicia com uma provocação sobre as narrativas idealizadas dos grandes heróis da nação (entenda mais em nossa crítica clicando aqui, desde que isso não prejudique sua experiência com o filme por conter revelações sobre o enredo) e é a partir deste ponto que começamos nossa conversa. Formada em Comunicação Social: Rádio e TV pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e especialista em Roteiro Audiovisual pelo Centro Universitário SENAC, ela é consultora de inúmeros projetos, dentre eles os festivais Visões Periféricas (RJ), Lab Negras Narrativas (SP) e FICA – Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental | Lab ABD (GO). Por sinal, em determinado ponto da história do filme somos levados de Ouro Preto, onde o personagem viveu e construiu seu reinado, para São Paulo. Um processo que a cineasta adiciona ao filme a partir da diferença entre as várias igrejas daquela cidade mineira. Um espaço criado para ser democrático e de religação pela fé e que, mesmo assim, reproduzia preconceitos e discriminações.
Convidada a dar sua visão a trajetória do biografado como diretora nesse projeto da Abrolhos Filmes, ela também tem a sua produtora, a Oxalá Produções, responsável, dentre outros projetos do álbum visual “Bom Mesmo é Estar Debaixo D´Água”, de Luedji Luna (clique aqui e assista a esse lindo trabalho). “Chico Rei Entre Nós” é parte de um projeto que reuniu uma equipe de produção integralmente feminina e negra. Joyce entende que, no que tange à representatividade, deter os meios de produção é fundamental, vital para dar voz a realizadorxs negrxs e suplantar apagamentos históricos em filmes de resgate como este documentário. Mas, sabe também que isso não é o suficiente. Em uma estrutura complexa como é o audiovisual, é preciso ter controle sobre distribuição e exibição. A cineasta, então, não foge das outras batalhas que sucedem a captação e realização de uma obra.
Diretora administrativa da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (APAN), ela fala em nossa entrevista sobre a plataforma Todes Play, uma plataforma gerida pela APAN que busca consolidar um mercado mais diverso e representativo, evidenciando as relações existentes entre o conteúdo e quem o realizou. Além disso, monitora a regulamentação dos serviços de streaming, algo que tanta apreensão tem causado. Em uma manhã de quarta-feira, durante a janela de exibição de seu filme em um dos maiores festivais do país, poucos dias após o lançamento de uma plataforma e faltando apenas dois dias para sua participação no Encontro de Cinema Negro, Joyce fala com a Apostila de Cinema com a serenidade de é uma Rainha.
Toda a construção identitária a ser transmitida com seu documentário parece ter sido absorvida por ela, que transmite a certeza de estar preparada para cumprir todas as missões que uma comunidade dela espera. Porém, sente falta do encontro presencial nesses espaços. Mas, assim que for possível, ela reencontrará seus reis-súditos, que atropelarão suas falas e tornarão ainda mais plural as criações da cineasta.
Entrevista | Joyce Prado
Apostila de Cinema: Ia começar perguntando justamente sobre o início do filme. Me chamou atenção essa abordagem sobre essa suposta duvida da existência de Chico Rei. Como que foi o processo da construção do filme a partir dessa narrativa contra o apagamento de uma história e como que você chegou nessa abordagem justamente da parte inicial do filme.
Joyce Prado: Interessante porque a parte inicial do filme foi a última que a gente mexeu no processo de corte final e eu acho que foi a última porque eu tinha um pouco de receio com a personagem, uma pessoa que tem uma excentricidade. Acho que me incomodava levantar a dúvida sobre a existência ou não de Chico Rei, mas aí eu também comecei a compreender que ali ele refletia a dúvida que muitas pessoas têm. É muito bom também entender que não é que ele se contradiz, mas ele amplia a dimensão de quem poderia ser Chico Rei, colocando a possibilidade de ser muitas outras pessoas, homens e mulheres africanas trazidas naquele período.
Então, a partir do momento que eu fui percebendo como é importante nesse processo de condução do público, que a gente passe por diferentes momentos de relação com Chico Rei, então eu senti que a primeira delas deveria ser a nossa dúvida porque assim – quando a gente vai caminhando do meio para o fim do filme – a gente consegue trazer a vivência de Chico Rei de uma maneira mais afirmativa, mas também conseguir compartilhar essa vivência com muitas outras pessoas que tiveram atuações semelhantes, estratégias semelhantes e vivenciaram ali em espaços que ele esteve.
Sempre que assisto fico pensando muito naquele momento que a gente conversa sobre memória e um movimento nosso para evitar um apagamento histórico. Como que a gente reage, sendo que tanto apagamento já aconteceu. O processo de resgate também é se colocar, de se contrapor ao que é mais imperativo, que é o apagamento histórico. Então, acho que é um processo de entender como agir contra essa ação que é tão imperativa de um sistema, de uma história oficial.
Apostila de Cinema: A gente identificava nas narrativas clássicas uma visão romanceada e até um pouco mítica do colonizador e “Chico Rei Entre Nós” é uma figura que tem um leque de abordagens que até permitiria uma construção parecida, justamente pela religiosidade. Para você a obra sempre foi um documentário ou você pensou na ficcionalidade?
Joyce Prado: Como eu fui convidada a dirigir, já tinha uma primeira ideia de roteiro de documentário e nessa primeira proposta existiam alguns momentos ficcionais, casado com entrevistas principalmente de especialistas, historiadores, pessoas de um conhecimento mais formal e acadêmico. Analisamos e começamos a caminhar para continuar de alguma forma trabalhando uma narrativa que trouxesse até uma trajetória do herói, de uma maneira muito conceitual.
A narrativa conceitual que foi se consolidando passou por falarmos sobre o momento de cárcere – não só de Chico Rei e de outros africanos, mas o momento de um cárcere das pessoas negras com relação a sua percepção de identidade. O quanto nós somos impossibilitadas a identificar e afirmar essa identidade, passar por um momento de uma consciência racial e depois o momento de decisão de se mobilizar com a sua comunidade. Então, conceitualmente essa acabou sendo a nossa narrativa, que não deixa de ser conceitualmente uma narrativa de uma trajetória de heróis que vai se passando.
Com isso, não tinha mais espaço para o ficcional. Dentro do que do que eu construo de carreira autoral, busco muito entender no cotidiano as pessoas, aonde está o espaço uma experiência mais sensorial, imersiva e lúdica. Dentro disso o ficcional iria romper com tudo que já é de fabular as pessoas traziam. A gente tem alguns depoentes que nos faz viajar entre esse tempo, de passado e presente e nos ajudam a visualizar. Eu tenho um amigo, o documentarista Daniel Santiago, que observa como o depoente falando também nos ajuda a criar essas imagens. Acho que como o passado se torna um referencial tão escasso, no sentido não eurocêntrico, que talvez ficcionalizar só iria aproximar esse passado de uma coisa mais eurocêntrica também. Quis deixar a possibilidade de a gente ir criando essas imagens de um lugar que trouxesse um pouco o referencial desse depoentes, na sua maioria negros.
Apostila de Cinema: Seu objetivo em “Chico Rei” era fazer uma cartografia social. No processo de produção, houve mais de um deslocamento para Ouro Preto e se a ideia de inserir ao longo do filme o Largo da Forca, no bairro da Liberdade em São Paulo, com outras manifestações de apagamento foi trazer um pouco da sua leitura do seu espaço para dentro do filme? Em que momento você entendeu que seria interessante fazer esse contraponto territorial dentro da obra?
Joyce Prado: Seria ótimo, se a gente tivesse ido para Ouro Preto mais de uma vez, fomos apenas uma. O processo de desenvolvimento desse filme foi muito intenso, porque eu entrei no projeto em novembro de 2018 e a gente já rodou em janeiro de 2019. Só conseguimos fazer previamente quatro dias de pesquisa de locação e personagem no mês de dezembro – depois chegamos para gravar durante nove dias.
Tinha esse desejo de trazer São Paulo, justamente por ser um receio da produção executiva uma história que fosse regionalista, retratando algo muito regional. Vir para uma metrópole como São Paulo também é um movimento de trazer e fazer com que as temáticas levantadas em Ouro Preto e que são também temáticas que permeiam diferentes cidades e sociedades também tivessem a sua verdade dentro de uma metrópole – e assim ampliando a discussão para uma megalópole.
Durante esse processo de gravação em Ouro Preto, me deparo com essa cidade que é um patrimônio histórico, mas rodeado por uma periferia que não é retratada. Sem a presença do Estado, carente de políticas públicas. Ao mesmo tempo, essa periferia faz parte de São Paulo e é esteticamente, visualmente e arquitetonicamente muito parecida.
Um tema que foi muito forte na minha compreensão do que é desmobilizar uma comunidade é a gentrificação. Então, quando a gente fala sobre a descaracterização do centro de São Paulo, a gente fala sobre esse processo. E, quando falamos dessa cidade que é um patrimônio histórico, a gente também sobre gentrificação. Ouro Preto tem uma especulação imobiliária e valores de móveis que são inacreditáveis para uma cidade de 80 mil habitantes.
Além disso, perceber o que tem foi afetado por esse processo nessas duas cidades: desmobilização da comunidade negra, principalmente na reivindicação de direitos. Quando a gente olha, por exemplo, para Irmandade de São Paulo, hoje é composto por 72 pessoas. É quando a gente entende como a gentrificação é efetiva, já que essa mesma Irmandade chegou a ter mais de duas mil pessoas. A comunidade que existia em volta dessa Irmandade passa a ser enviada para as margens e para as periferias da cidade, acabando com um ponto de encontro de construção política e social. Às vezes olhamos para elas enquanto espaço exclusivamente religioso, mas elas não apenas isso hoje e também não eram em outros períodos.
Com isso, conforme a gente foi gravando em Ouro Preto, foi se tornando cada vez mais consolidado o que seria um caminho de abordagem para São Paulo. Além da trazer a questão do apagamento histórico e imageticamente os contrastes dessas arquiteturas. Quando você mostra, seja a igreja do Paysandu, seja a Igreja de Santa Efigênia, naquele local onde é a Bovespa, você mostra esses espaços e vê como essa cidade te engole. Percebe como as coisas se perdem. Enquanto isso, Ouro Preto tem esse passado sendo enaltecido e exaltado continuamente, porém, sob uma historicidade negra que está em apagamento. Esses dois movimentos e essa possibilidade de contraste dessa arquitetura também foi muito provocativo no sentido de aproximar as duas cidades.
Acho que a cartografia vai também em cima disso. De buscarmos trazer quase uma comparação desses dois espaços, para, ao final, perceber processos de apagamento muito semelhantes. Com floreios ou dinâmicas de organização muito diferentes, mas colocando as pessoas negras ao lado e às margens do que é a história e a construção desse país.
Apostila de Cinema: Toda a equipe de “Chico Rei Entre Nós” é feminina e negra. Você foi convidada a dirigir, portanto, chegou numa fase de pré-produção um pouco mais avançada. Mesmo assim, chegou a participar de alguns processos de escolha? Como que foi a experiência de trabalhar em um grupo de trabalho inteiramente feminino e negro no filme?
Joyce Prado: Por mais que eu tenho entrado na reta final foi muito bom porque teve um diálogo muito importante sobre a formação desse equipe. A produtora já tinha uma experiência prévia de captação de imagens em Ouro Preto, porém, entenderam que precisava revisitar esse projeto e imagens. Com isso, eu aproximei duas pessoas com as quais já trabalhei: a Nuna Nunes (diretora de fotografia) e a Evelyn Santos (técnica de som). Quem estava ali na formação de equipe era a Laura Barzotto, produtora executiva. Ela também já conhecia e pesquisado sobre o trabalho das duas foi muito interesse conseguir consolidar e trazer essa perspectiva para além de uma diretora negra, ampliando para outras esferas do que é a realização.
Acredito muito na coautoria e foi fundamental a presença delas para compreendermos melhor as texturas, tanto de som quanto de imagem, bem como todos os enquadramentos que a gente busca trazer para o filme. Natália Vestri, roteirista, já fazia parte desde o início e fui muito bom ter a continuidade dela na equipe, para também ser uma pessoa que se tornou um referencial do que estava acontecendo antes, trazendo uma bagagem de pesquisa. Além disso, Luana Rocha, enquanto pesquisadora acaba também trazendo da compreensão de uma perspectiva. Quais são os perfis de depoentes que a gente está buscando dentro dessa narrativa conceitual que compartilhei com você? Aonde a gente encontra depoentes que também produzem isso, que consigam realizar essa trajetória conosco? Ao final, também estamos buscando personagens que se assemelham com a trajetória de vida de Chico Rei. Porém, dentro de diferentes perfis e espaços, os que ele esteve ou não. Tudo isso ao mesmo tempo.
Com relação ao processo de montagem, Tatiana Tofoli já é uma montadora com mais experiência e foi fundamental para conseguir organizar e me ajudar a organizar esses diferentes temas que o filme acabou atravessando. A gente passa pelo processo de filmagem, vai ampliando, mas depois a gente precisa entender o que que realmente está sendo contando e o conduz os espectadores ao longo da proposta do filme.
O que eu senti com relação a equipe foi muita cumplicidade. Como o Reinado também é uma festividade com seu próprio calendário, não pensando muito nas folgas de equipe, a gente teve diárias muito intensas de 10, 12 horas – com dias seguidos de filmagem. Existiu um diálogo muito forte entre a equipe. Depois de muitos dias gravando, você precisa ter um alinhamento muito forte.
Quando eu penso em uma formação predominantemente de mulheres, amplio para falar também de experiências de vida. Perspectivas de mundo que partem de lugares muito próximos, olhares críticos que têm uma semelhança nesse sentido. Estamos falando muito sobre a mulher dentro do cinema e cada vez mais a presença dessas mulheres precisa ser entendida como a formação de um olhar crítico que se diferencia, justamente porque as vivências são diferentes entre gêneros. Não adianta a gente considerar que são as mesmas, porque precisamos pegar todas as trajetórias, backgrounds e experiências que definem o que nós somos perante a sociedade.
Apostila de Cinema: O filme será apresentado no encerramento do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul deste ano e você faz também consultoria de outro outros festivais. Eu queria perguntar para você como foi esse esses 2020 atípico em relação a esses eventos e como que foi essa ampliação do acesso e alcance, porém com a ausência do encontro físico?
Joyce Prado: Aqui nós temos duas dificuldades de conexão. A primeira em relação às pessoas que não têm uma garantia de boa conexão de casa, somada à impossibilidade de se conectar de alguma forma no evento presencial – dependendo do perfil dos eventos era mais facilitado. A segunda é a dificuldade de construção de trocas de uma maneira mais fluida. Acho que uma das dinâmicas mais difíceis para nós brasileiros, em geral, é essa coisa de “um fala, outro espera’. Eu sinto muita falta quanto estão todos juntos e com aquelas conversas paralelas dos encontros presenciais, possibilitada nas dinâmicas dos eventos.
Eu tenho participado e sinto que a gente já está passando por um desgaste do formato online e das lives. Se torna cada vez mais desafiador atrair um público a estar presente e pensar formatos que agradem e inovem dentro dessa dinâmica.
Estamos agora pensando no primeiro Festival do Audiovisual Negro do Brasil a ser organizado pela Associação dxs Profissionais do Audiovisual Negro. Principalmente em relação à centralização e acho que esse é um dos pontos mais positivos do contexto de realização desses eventos, que é descentralizar mesmo e não pensar o seu público de uma maneira, vinculado a uma cidade, mas poder pensar em outros Estados, cidades e regiões. Nesse sentido, acho que fica o desafio da formação de uma rede mais ampla. A gente sabe que o eixo Rio-São Paulo nunca deram conta da diversidade de produção. Então, uma das coisas que a gente tem pensado na realização desse evento é como engajar diferentes regiões em torno dele. Acho que também começamos a ampliar o público, mas isso passa não só pelo interesse dele, mas também no de quem está produzindo e realizando nessas regiões. Chamando para que participem, a partir da possibilidade dessa rede.
Acho que, nesse sentido, o Encontro de Cinema Negro já tinha um movimento muito forte de trazer cineastas de diferentes partes do país e se tornar um ponto de encontro durante duas semanas. Você se reunia com uma galera que você não via há muito tempo e acredito que eles conseguiram ter essa manutenção de continuar engajando pessoas de diferentes Estados e ao mesmo tempo aproximado também as diferentes diásporas.
Apostila de Cinema: E como está a expectativa para a apresentação na sessão do Encontro?
Joyce Prado: Estou muito ansiosa né porque estamos falando de um público que é diferente do público da Mostra SP, a população negra é o primeiro público para qual foi pensado “Chico Rei Entre Nós“. Então, fico ansiosa para entender como é que vai ser a receptividade dentro desse espaço Porém, perdemos justamente as possibilidades de conversa após exibição, sentirei falta de ter conseguido lançar dentro de outro contexto, poder ter uma escuta mais próxima, críticas mais próximas, entendendo mesmo o que seria interessante ser repensado dentro do filme nessa estrutura.
Apostila de Cinema: E a diferença entre participação na Mostra SP e no Encontro de Cinema Negro. Fale da importância do filme ocupar esses dois espaços concomitantemente e transitar por um festival que sempre foi plural territorialmente mas, dentro da produção brasileira, não abria tanto espaço para a diversidade até pouco tempo.
Joyce Prado: A gente recebeu com muita felicidade a seleção. Como te disse, tinha o receio do filme ser visto como uma história mais regional e teve esse esforço para demonstrar que esse tema é relevante de uma maneira mais global, entendendo que movimentos que aconteceram aqui são semelhantes a outros países e muitos outros Estados do Brasil. Participar da Mostra, enquanto uma pessoa que cresceu em São Paulo interessada por cinema e fui muito à Mostra durante a adolescência, é importante.
Também é importante que a Mostra deixe de parecer um lugar tão elitista, com a presença exclusivamente de uma branquitude, de realizadores brancos quando a gente fala de Brasil. Cada vez mais a sociedade está interessada em se ver como um todo. Precisa ter mais pluralidade dentro dessas narrativas, dentro dessas experiências em tela. Eu sinto que o que a Mostra traz tanto com “Chico Rei Entre Nós”, quanto com “Um Dia de Jerusa“, da Viviane Ferreira, uma compreensão dentro desses grandes festivais que já não tem mais espaço para que a gente tenha narrativas únicas ou para que a gente traga apenas uma perspectiva desse país.
Acho que isso vem a partir de pressões, de questionamentos sobre curadoria. Existe um grupo forte de curadores e curadoras negras em atuação e também na crítica. Eles olham para esses festivais há alguns anos. Inclusive, dentro do Encontro de Cinema Negro a gente tem falado muito sobre o que a importância da presença nesses festivais, apesar de ser igualmente importante continuar sendo crítico a eles.
Sabemos que, dentro dessa trajetória, a gente está falando de momentos de exceção. A ideia é que esses momentos de exceção se consolidem e se tornem uma maneira de apresentar o Cinema Brasileiro de uma maneira mais plural. Isso passa por além dos festivais, passa por acesso a recursos, por políticas públicas, o sistema e a indústria do cinema no Brasil como um todo.
Apostila de Cinema: A Associação dxs Produtores do Audiovisual lançou esse mês a plataforma Todes Play. Você, enquanto Diretora Administrativa, pode falar como foi esse lançamento e o processo de construção do plataforma?
Joyce Prado: O lançamento da Todes Play ocorreu dia 18 de outubro, por ser uma homenagem, uma lembrança ao nascimento de Grande Otelo. Pensando a questão do streaming, acho que cada vez mais a gente tem acompanhado muito a falta de regulação dos VODs dentro do audiovisual. Então, enquanto não sabemos o que vai acontecer e todas as dinâmicas estão sendo discutidas dentro do Congresso Nacional, gente começamos a pensar como também precisamos ter uma plataforma de streaming que consiga abarcar o audiovisual identitário. Não exclusivamente o audiovisual preto, mas o cinema realizado por povos originários e pela comunidade LGBTQI+. Isso em uma dinâmica que seja mais acessível, que pense mais em realizadoras e realizadores, que tenha propostas de gestão de negócios diferentes das plataformas atuais; e que consiga pensar uma curadoria de filmes, a recepção de conteúdos, a partir desse audiovisual identitário.
Então, a Todes Play nasce com esse pensamento e também a partir do que a nossa experiência e proximidade dentro da regulação do VOD. O risco de ver nossos conteúdos em plataformas aonde não temos participação de tomada de decisão e nem fazer parte da curadoria. Pensamos: “vamos começar a pensar o que seria um streaming, um on demand, que fosse pensado por nós e que fosse gestado por nós”. Acho que se fala muito sobre o processo de emancipação, de como que a gente participa dessa nova forma de distribuição de conteúdo sem ser exclusivamente uma pessoa que detém ou que cessa os seus direitos para outros. Ao mesmo tempo começa a ter um controle melhor sobre aonde o seu conteúdo está e como ele é distribuído. Nessa ideia de um modelo de negócios que pense mais em realizadores de realizadoras, a Todes Play, a partir dessas provocações.
Apostila de Cinema: Há outros projetos em curso relacionado à distribuição e até mesmo ao parque exibidor aqui do Brasil ou a Todes Play é como se fosse um embrião dessa forma de distribuição mais direta do conteúdo?
Joyce Prado: A Todes Play é o nosso embrião. A gente já tinha em mente um grupo de trabalho de distribuição, com o propósito de mapear as produções do audiovisual negro do presente e do passado; consolidando um catálogo para ter diálogo com festivais, mostras e outros espaços exibidores. Do trabalho e da pesquisa desse catalogo, a gente começa também a ideia da plataforma, que já é um resultado de um mapeamento maior sobre distribuição Até para a gente entender quantos e quem está produzindo, como está produzindo; bem como o histórico de realização. Quantos filmes os realizadores já lançaram, o intervalo entre lançamentos…
Tudo isso foi uma primeira pesquisa do catálogo e essa mesma equipe que estava na gestão acaba sendo a equipe que começa esse movimento da Todes Play e se aproxima de pessoas que fazem festival e mostras em diferentes cidades. A Associação tem muito que trabalhar com diferentes regiões, esse é outro ponto importante para a plataforma. Não é um streaming que pensa só os eixos Rio-São Paulo, como é o foco das grandes do mercado. A Todes Play já tem pessoas que são do Pará, da Bahia e de vários lugares. Com isso, a gente também garante mais conteúdo desses outros espaços. Ela é, sim, um embrião porque depois dela a gente não sabe qual é o próximo passo. O primeiro momento é consolidar a plataforma.
Apostila de Cinema: Eu queria aproveitar para você falar de projetos que você tem andamento e sobre alguma outra manifestação que as outras perguntas não atingiram.
Joyce Prado: Eu tenho um próximo filme, um curta-metragem ficcional chamado “Calmon“. Ele é um filme de época que investiga a possibilidade de uma maternidade negra, como isso é atravessado por questões sociais. A personagem principal é uma empregada doméstica que só pode retornar para ver a sua filha aos finais de semana. Portanto, fala um pouco sobre essa impossibilidade da maternidade negra.
Em relação a documentário eu tenho outro projeto em desenvolvimento que chama “Liberdade é o Meu Tormento” e que também tem esse diálogo entre presente e passado. Porém, trabalhando a biografia de Laudelina de Campos e Antonieta de Barros e como isso se relaciona com a trajetória política de Erica Malunguinho e da Preta Rara, enquanto ativistas pelos direitos das empregadas domésticas – assim como Laudelina.
Esses são os dois projetos que estão rolando. O primeiro em desenvolvimento, esperando voltar para o set de uma maneira mais tranquila e segura. O segundo em processo de captação de recursos. Além disso, a Oxalá Produções segue lançando trabalhos recentes, fez isso ao longo de 2020, apesar da pandemia os lançamentos não pararam.
Por fim, gostaria de agradecer aos depoentes de “Chico Rei Entre Nós“, eles que não se restringiram a colocar sua opinião, se expuseram, compartilharam suas perspectivas com a gente e fico muito grata com essa cumplicidade que acabou acontecendo durante essas entrevistas, na captação das vidas deles.
Entrevista | Joyce Prado
Para Saber Mais:
Acesse a plataforma Todes Play, clicando aqui
Visite o site da APAN – Associação dxs Profissionais do Audiovisual Negro clicando aqui.
Leia nossa crítica de “Chico Rei Entre Nós”, de Joyce Prado
Assista a “Bom Mesmo é Estar Debaixo D´Água”, álbum visual de Luedji Luna com direção de Joyce Prado:
1 Comment