Kasa Branca

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Sinopse: Dé é um adolescente negro da periferia da Chatuba, Rio de Janeiro, que recebe a notícia de que sua avó, Almerinda, está na fase terminal da doença de Alzheimer. Ele tem a ajuda de seus dois melhores amigos, Adrianim e Martins, para enfrentar o mundo e aproveitar os últimos dias de vida com ela.
Direção: Luciano Vidigal
Título Original: Kasa Branca (2024)
Gênero: Drama
Duração: 1h 35min
País: Brasil

Kasa Branca (2024) Crítica do Filme

Muito a Fazer

Destaque do ano no cinema brasileiro até o momento, “Kasa Branca” marca a estreia de Luciano Vidigal na direção de longas-metragens ficcionais. Um dos aspectos mais interessantes do filme é como o cineasta, a despeito de toda a carga de representatividade e territorialidade, bem como o discurso sócio-político inerente ao seu fazer Cinema, articula a narrativa em uma engrenagem destacada por universalismos capazes de atrair um empolgado público às salas, em circuito marcado por lançamentos nacionais populares dos últimos meses.

A história é protagonizada por Dé (Big Jaum), um jovem que recebe a notícia de que o Alzheimer de sua avó, Almerinda (Teca Pereira), está em fase terminal. Apesar da consciência de quem sabe que se trata de uma doença sem cura e degenerativa, ouvir de um especialista a frase “não há nada que se possa fazer” é duro. Até porque, refletindo melhor, não é porque os cuidados médicos entram em fase paliativa que, de fato, “não há nada que se possa fazer”. É com esse espírito que Dé lida com a realidade, não abandonando aquela senhora, apesar das dificuldades de sua rotina.

Aqui um forte aspecto universalista de “Kasa Branca” se impõe. Almerinda é um corpo presente de mente ausente. A solução para entender suas necessidades se baseia em uma mistura de amor, instinto familiar e conhecimento do passado. Vidigal atrai as cargas de ancestralidade e territorialidade em um espaço narrativo que não tira a zona de conforto do espectador. A obra é desafiadora menos por sua estética e mais pelas reflexões que ela provoca.

Com isso, há momentos em que o silêncio comanda as ações. Dé transita com Almerinda por espaços, junto a uma mente que não se manifesta. Na passarela na região da Chatuba, em uma roda gigante ou revisitando fotografias, há uma insistência do neto em fazer a avó experienciar a vida enquanto ainda lhe é permitido. É também o silêncio que domina seu comportamento quando seu pai, interpretado por Babu Santana, atende o telefone. A ausência da figura paterna dói ainda mais na situação-limite da realidade do protagonista. Por outro lado, Vidigal nos apresenta o outro extremo da região metropolitana do Rio de Janeiro, já que o filho de Almerinda trabalha como pedreiro na zona sul carioca.

Em paralelo a esse jogo de adivinhação e carinho de Dé, há um núcleo de personagens jovens, amigos do garoto. Um deles, Adrianim (Diego Francisco) passa o remédio caro da senhora Almerinda no cartão da mãe sem autorização. Outro, Martins (Ramon Francisco) ajuda Dá a fugir da “Bruxa de Blair”, a proprietária da casa que tenta cobrar os três meses de aluguel atrasados. Aos poucos, “Kasa Branca” vai sedimentando na mente do público não apenas os “corres” daquela turma, mas também a forte carga de consciência que eles possuem. Seja de forma indireta pelas atitudes políticas, seja pelo prazer direto de permitir uma sexualidade fluida. Por sinal, talento e carisma do trio de garotos que estrelam o filme é mais um dos destaques.

Algo familiar no cinema de Luciano Vidigal, não apenas diretor, mas também ator e roteirista. A rotina de reconhecimento da crítica se estendeu com “Kasa Branca” vencendo o prêmio de direção da Mostra Première Brasil do Festival do Rio de 2024. Com a câmera na mão, o realizador ajudou a construir importantes capítulos do audiovisual brasileiro na década passada, em obras como uma das partes do representativo “5x Favela: Agora por Nós Mesmos” (2010) e o retorno ao território de uma obra alçada a novo clássico com o documentário “Cidade de Deus: 10 Anos Depois” (2013), ao lado do co-diretor Cavi Borges. Nascido e criado no Vidigal, carrega no nome o território e é parte do coletivo Nós do Morro, onde o ótimo elenco de sua estreia em longa-metragem também está.

Não é surpresa que o discurso político faça parte da obra. Dé destaca em um diálogo a necessidade de subsídio governamental para conseguir fechar suas contas, por exemplo. Em outro momento, o atendimento em hospital público é negado à Almerinda. Podemos citar também a abordagem policial racista (além de ilegal e corrupta) com seu amigo em uma moto. Na cosmologia do filme, a Chatuba de Vidigal é formada por jovens com autoconsciência e sabedores de todas as leituras já citadas acerca do passado e do território que ocupam.

Um muro de grandes personalidades progressistas do século XX é um breve personagem de “Kasa Branca”, algo parecido com o que André Novais Oliveira fez em “O Dia que te Conheci” (2024). Mais um elemento que coloca o discurso político não apenas na narrativa e enquanto posicionamento do realizador e sim inserido no espaço.

Aos poucos, o silêncio deixa de imperar enquanto elemento. No cenário aparentemente desolador da proximidade da morte da avó e da falta de perspectiva, a participação de L7nnon (e sua vida de cinema) apresenta um jovem originário daquele espaço que, obtendo sucesso, não esquece de sua origem. A partir do reencontro, a ideia de prosperar enquanto ponto de cultura enche de música “Kasa Branca”, ao som do trap. O silêncio volta a aparecer como contraste, na cena que dialoga com o prólogo do filme, voltando aos trilhos do trem em direção à Central do Brasil.

Quando Dé parece unir uma solução a parte das questões financeiras com momentos em que ele conseguirá finalmente dar cabo de seus desejos, Almerinda faz um rito final de comunhão com a terra. Quase como se antecipasse outro rito, o de de passagem, pela conexão com o neto que entende a proximidade do fim. Esse seria o término do longa-metragem se ele apostasse apenas na vinculação entre universalismo e discurso político. Mas, Luciano Vidigal reserva, quase como um epílogo, os últimos minutos para materializar parte do discurso.

Na grande cena da obra, o território fragmentando do Rio de Janeiro conecta Chatuba e Arpoador. Faz a consciência geracional dos jovens de hoje expor a ausência paterna da geração anterior. É justamente nesse ponto que “Kasa Branca” se eleva enquanto obra ainda mais.

Veja o trailer:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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