Limiar

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Sinopse: Documentário autobiográfico realizado por uma mãe que acompanha a transição de gênero de seu filho adolescente: entre 2016 e 2019, ela o entrevista abordando os conflitos, certezas e incertezas que o perpassam numa busca profunda por sua identidade.
Direção: Coraci Ruiz
Título Original: Limiar (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 13min
País: Brasil

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Daqui pra Frente

Limiar” é mais uma produção que os diversos festivais paralelos de 2020 nos fez perder sua exibição no Festival Mix Brasil – e que o Festival Cajubi nos permitiu no início do novo ano prestigiar. O documentário autobiográfico de Coraci Ruiz é de uma sensibilidade acima da média, que transforma seu núcleo familiar em um recorte de uma sociedade brasileira que precisa se ver para poder se compreender. O filme nasce do projeto de Doutorado da cineasta junto à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e consegue unir pesquisa e sentimento da mesma forma que laços pessoais e comunitários. Uma obra única, de duração curta se pensarmos a pluralidade de temas que abarca.

Coraci recebeu esse nome pelo amor que sua mãe Lena tem por “Maíra“, escrita romanceada do antropólogo Darcy Ribeiro e fundamental para compreender as representações identitárias dos povos originários do Brasil. Com isso já temos acesso à visão progressista da mãe da diretora. Apesar de uma narração impressionista, que remeterá grande parte do público à forma como Petra Costa se apresenta, por exemplo, aqui estamos diante de uma configuração um pouco diferente da atuação política das personagens reais expostas.

O núcleo familiar, liderado pelo mãe de Coraci, entende a visão de esquerda e as conexões com o bem-estar social enquanto modo de vida. Não que o ativismo não seja importante, mas o comportamento é peça-chave nas relações mais íntimas. Isso explica muito da sensibilidade da diretora, que desde jovem alimentava uma espécie de diário filmado e sabe que uma imagem nunca será apenas uma imagem – e dirá mais do que os sons e palavras que as acompanha. A geração anterior à sua provoca um rompimento ideológico, se reconhece enquanto elite mas foge do conservadorismo, Em “Limiar” Ruiz terá vantagem na olha de aplicar seu olhar – que já era crítico desde sempre.

Essa ponte criada com o passado é muito tocante, mas é inegável que o grande legado do longa-metragem, o que pesa na obra, é a relação da diretora com seu filho Noah. Com roteiro e montagem de Luiza Fagá somos envolvidos em uma lição sobre intersecções e atravessamentos do feminismo da última década sem que soe didático. Coraci recebe o golpe antidemocrático de 2016 como um chamado para produzir e, apesar de frequentar protestos pelos direitos das mulheres desde 2011, ela clareia o que seria uma missão inegociável junto à sociedade que, com suas qualificações acadêmicas aliada ao talento artístico, ela almeja transformar.

Sendo assim, estamos diante de mais um exemplo do audiovisual brasileiro que unifica elementos, linguagens, narrativas e – principalmente – pautas e formações. Ao sairmos da lógica de que só trabalha com cinema quem “faz filme” e vice-versa, permitimos a chegada de outras abordagens, que surgem de outros espaços. Como consequência, enriquecemos essa forma de manifestação cultural no Brasil. Por mais que reiteremos aqui que estamos diante de um fazer cinema de desapego – posto que muitas regras aparentemente rígidas são rasgadas para viabilizarmos certos discursos – também é lindo identificar a prático do apego, o uso de si como objeto da própria criação.

Por trás de tudo o que o longa-metragem nos diz, há uma linda homenagem, uma declaração de amor de Coraci para Noah, um talentoso artista visual – também parte da produção e da identidade do filme. Há também uma fala sincera de Lena sobre o que ela entende como uma agressiva mudança corporal, um choque geracional que a cirurgia de readequação sexual suprirá com mais acesso às informações e esclarecimento para a população. A ficcionalidade nos trouxe uma potente narrativa sobre o nome social e as questões posteriores a uma mulher trans em “Valentina” (2020), outro grande filme do ano passado capaz de trazer uma transformação silenciosa na combalida opinião pública.

Já esse filme nos traz uma outra forma de acolhimento familiar amplo, geral e irrestrito – para lembrar os tempos de redemocratização. Trata-se do necessário acolhimento prévio, que marque as escolhas e a trajetória de Noah com uma palavra que tanto significa para nós e cada vez menos praticada: respeito. Se há estranhamentos, o amor os desenrola. Diante desse cenário, a sociedade avança e as pautas caminham sem olhar para trás. A representatividade se tornou um bem inegociável (tal qual a missão de Coraci) e “Limiar” reforça a ideia de que não há a menor possibilidade de recuo, é a partir desse ponto que iremos resistir.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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