Malmkrog

Malmkrog Cristi Puiu Filme Crítica Mostra SP Pôster

Logo Mostra SP 2020 Sinopse: Nikolai é um rico fazendeiro que deixa sua propriedade no campo à disposição de alguns amigos. Para os convidados, o tempo passa regado a fartas refeições, jogos sociais e longas discussões sobre a morte e o Anticristo, o progresso e a moralidade. O debate se torna mais acalorado, os temas tratados cada vez mais sérios e, logo, as diferenças culturais e de pontos de vista revelam-se evidentes e intransponíveis. Definitivamente, nenhum deles é capaz de perceber a dimensão da situação em que involuntariamente se meteram. Adaptação do livro Three Conversations, do filósofo russo Vladimir Solovyov.
Direção: Cristi Puiu
Título Original: Malmkrog (2020)
Gênero: Drama Histórico
Duração: 3h 21min
País: Romênia | Sérvia | Suíça | Suécia | Bósnia-Herzegovina | Macedônia do Norte

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Anticristo Social

A experiência de assistir a “Malmkrog“, exibido na seção Perspectiva Internacional da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, se assemelha com a leitura de um grande romance russo clássico. Há quem se prenda naqueles compêndios de Dostoiévski ou Tolstói (para citar os mais famosos) pela complexidade da narrativa, que se desdobra por caminhos que não conseguimos prever. O diretor Cristi Puiu, vencedor do prêmio de direção da mostra Encontros do Festival de Berlim de 2020, faz isso de uma forma bem mais moderna. Mesmo que utilize a verbalização em diálogos que irrompem desenfreadamente, os realiza com mudanças de visões, concedendo protagonismo a mais de um personagem – que vem a ser o título de cada um dos seis capítulos do filme.

Também aplica essa proposta em um espaço delimitado, o da vistosa mansão onde a alta sociedade russa, identificando a mudança de ventos do país, usa o confinamento momentâneo para falar sobre tudo – e nada concluir. Neste ponto reside outro elemento de atratividade da velha narrativa das publicações desta nação: a discussão sobre aspectos políticos, filosóficos e sociais que se impõem nas conversas entre as figuras que transitam pela obra. Adentrar no mundo da literatura russa é passar por esse contato, é receber pequenos discursos ou abordagens travestidas de avanços narrativos. Ao unir estética e linguagem desta natureza, em um cenário onde as ações precisam ser calculadas e mesmo assim alcançar um amplitude de visão (tanto temática quanto no que se põe na tela), o cineasta romeno nos deixa com pouco a fazer a não ser admirar o que se passa na tela.

Malmkrog” adapta uma obra do filósofo Vladimir Solovyov, um autor capaz de unir o já citado Dostoiévski a uma dinâmica nietzschiana (todos eles transitaram por este plano existencial na mesma época). Isso faz com que, a despeito da ampla construção de narrativa, o indivíduo seja o foco da manifestação artística do longa-metragem. Baseia-se na última obra lançada por ele, “Os Três Diálogos e a História do Anticristo“. Para muitos, uma profecia sobre o comunismo (para quem relaciona uma política baseada no bem-estar social a algo demoníaco). Fato é que seus escritos foram menos celebrados no início do século XX do que seus contemporâneos – e há registros de que ele foi uma das inspirações para os personagens-título de “Os Irmãos Kamarazov“. Puiu segue outra lógica, faz esta adaptação em formato de fina ironia – ou talvez não faça e deva admitir que meu olhar já esteja maculado por qualquer discurso flagrantemente burguês.

Além disso, faz uma espécie de ode aos métodos pelo qual a Filosofia se apresentou ao longo dos séculos. O primeiro capítulo, nomeado Ingrida (Diana Sakalauskaité) usa o método socrático de provocação a partir do diálogo, como se aquela senhora, militarista, fosse a visão da experiência, a Sofia a ser questionada pelos discípulos, assim como o conceito de sofiologia que, anos mais tarde, o teólogo Sergei Bulgakov desenvolveria no mesmo país. Ingrida, portanto, seria o Deus daquela casa. Só que o diretor faz isso em quase meia hora de “Malmkrog onde um plano parado – com um corte – e outro plano-sequência, nos ambienta em uma pequena sala de estar. A profundidade de campo nos revela a porta de saída, um corredor e a sala de jantar, outros espaços daquela mansão que conheceremos mais adiante. Apresenta a realidade daquelas pessoas pelo viés do território. Opõe suas visões limitadas sobre os assuntos a uma amplitude do espectador. Debocha delas ao colocá-las em meio a grandes estantes de livros que, se tivessem lido, não teriam a mesma visão empoeirada que essas peças decorativas.

Essas linhas de observação desmontam a sensação de teatralização que compõe o primeiro plano da ação. Parece tudo muito complexo aqui porque o é, mas nunca de uma forma inacessível ao espectador. Olga (Marina Palii) será a personagem que protagonizará o capítulo final, mas seu ateísmo transita a todo instante por “Malmkrog”, unindo tal discurso às manifestações a favor da lógica da guerra o Cristianismo. Aos poucos, o texto de Solovyov nos permite debater motivações daqueles que, obrigados a participar de conflitos, se tornam assassinos. Com tempo necessário para costurar tudo isso, há momentos do longa-metragem que parece nos colocar dentro de um livro. Um relato de guerra é lido em uma longa carta, em que as tensões entre armênios e cossacos se tornam palco para uma visão xenófoba e de intolerância religiosa das dinâmicas da sociedade russa.

A simbologia de figuras míticas como os bashi-bazouk, soldados do Império Otomano representado nos diálogos de maneira próxima com os bandeirantes evangelizadores brasileiros é destaque. Nikolai (Frédéric Schulz-Richard), protagonista do quarto capítulo, usa outra linguagem filosófica, em um monólogo impressionante sobre a dificuldade de atingirmos a simplicidade pura. Tudo regado a muito luxo e banquetes, maquiando a decadência moral de uma classe prestes a ser esmagada. Ao ponto de começarem a questionar a limitação ao consumo de carne, a abstinência de álcool e fumo e a veracidade da Bíblia, signos de status e parte dos pilares elitistas de qualquer comunidade forjada no Cristianismo de um Deus que nos iguala para que nós mesmos nos dividamos em castas sem que isso faça sentido.

Por vezes, dá vontade de ter, por escrito, todos aqueles diálogos porque são frases infindáveis que merecem ser marcadas e relidas – uma relação pessoal que tenho com a obra-prima de Boris Pasternak, “Dr. Jivago”, por exemplo. Há uma preocupação de partir dos estranhamentos sobre a própria identidade cultural que se assemelham com esse livro, adaptado romanticamente por Hollywood nas mãos de David Lean. Aqui os personagens chegam a questionar de qual continente, de fato, fazem parte. Ao transitar por um pensamento que opõe o que eles chamam de Europa Selvagem, “Malmkrog” atinge o universalismo. Debatem a ideia da Europa como construção social, aquela na qual elite que detém o discurso do filme se entende. E propõe a ocorrência de “outras Europas”, do Japão aos Estados Unidos da América. Terminamos a sessão pensando o quanto nossa própria Europa, que até pouco tempo perdia espaço na sociedade brasileira, volta a emergir justamente como reação à decadência exposta por Cristi Puiu naquele casarão.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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