Mostra Lona 2020: Como conquistar territórios vazios

Mostra Lona 2020: Atravessamentos

Mostra Lona 2020 – Como conquistar territórios vazios

Territórios

Ocupações e Resistências

A sessão de abertura da Mostra LONA Cinemas e Territórios de 2020 com realização do MBL (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas) e apoio da Embaúba Filmes reúne três curtas documentais que têm em seu enredo ocupações urbanas em Natal e Belo Horizonte. É uma abertura de fôlego para um festival que visa denunciar e registrar visualmente a luta de pessoas marginalizadas em territórios de conflito e insegurança. A Apostila de Cinema reservou uma apostila especial para o festival online, onde cobrirá todas as obras apresentadas.

Em “Casa sem Parede”, iniciado em 2012, mas finalizado somente em 2019 a diretora Dênia Cruz nos mostra uma constatação que deveria ser óbvia entre imagens que intercalam o cotidiano dos moradores do Assentamento 8 de Março em Natal e o próprio território ocupado. Em seus depoimentos, a constatação já anunciada é: Ninguém mora em uma ocupação em casas sem infraestrutura básica porque o quer. A situação das ocupações urbanas no Brasil revelam não somente o abismo social e econômico que nos cerca e que, talvez hoje, nos últimos tempos, se faz visível de maneira ainda mais cruel através do modo como a população pobre, preta e sem recursos financeiros vem sendo tratada sob o medo constante de uma ausência do poder público para os resguardar diante da Pandemia que nos acomete.

O filme acompanha a luta diária do assentamento nomeado em homenagem às mulheres que lideravam a resistência local. É preciso dizer que esse protagonismo feminino é muito comum nesses territórios e o entendimento da comunidade como um todo faz com que algumas mulheres se destaquem e se reúnam para dar suporte à luta de todos que viviam na ocupação do Rio Grande do Norte.

O sentido da palavra comunidade precisa ser aqui discutido tanto em seu aspecto territorial, como agrupamento de pessoas em determinado local, mas para além disso como uma reunião de pessoas que adquirem consciência social a partir e durante a participação em movimentos de resistência política, econômica e cultural.

Começando com imagens de arquivo e já mostrando a destruição do Assentamento 8 de março em um incêndio que devastou a maior parte das casas, sob cinzas e escombros caminhamos com os moradores que revelam sua sensação de absoluta impotência diante do acontecido. Ainda assim, após a remoção, conseguem em negociação (e, iremos falar mais sobre a complexidade da utilização dessa palavra mais adiante) através do Programa de Moradia Plural casas em conjuntos habitacionais. Muitos moradores se mostram felizes com a conquista, ainda que o espaço seja pequeno. Pensando em outros processos de negociação os quais acompanhei, acredito mesmo que diante de uma negociação que, em geral, é forjada, essa seja a melhor das opções.

Disse que iria problematizar a utilização da palavra negociação justamente porque na maior parte das situações não são dadas opções aos moradores. Esse aspecto irá se revelar nos dois filmes que seguem essa sessão da Mostra.

Em comum, “Ocupar, Construir e Resistir” (2016) e “Na Missão, com Kadu” (2016) têm o fato de tratarem da mesma Ocupação em Belo Horizonte: a Izidora, localizada no bairro Jaqueline. A Ocupação já virou símbolo de resistência e de luta por moradia.

No entanto, os dois abordam os espaços de maneiras distintas. Em “Ocupar, Construir e Resistir”, dirigido por Dayanne Naessa, Edinho Vieira, Juliano Vitral e Roberta Von Randow, apesar de ouvirem relatos de abuso policial, bem como denúncias de racismo e preconceito social, os diretores optam por mostrar o cotidiano dos moradores que possuem casas com espaço para as crianças brincarem e hortas que servem de alimento distribuído entre a comunidade. Nesse sentido, é importante pensar na relação estabelecida entre essas pessoas e o território permitindo com que se integrem no movimento social, mas também em suas atividades diárias.

Uma das perversidades do processo de remoção é justamente realocar essas pessoas em espaços que, por mais que sejam mais seguros no sentido de estrutura, acaba por apartar corpos que já se enxergavam conectados. E, obviamente, esse é um dos objetivos. E, os moradores tem consciência disso. Reclamam do espaço que lhes é oferecido e podemos observar na fala de um morador que diz, inclusive, já ter trabalhado na construção de conjuntos habitacionais que a rotina da comunidade seria completamente alterada no processo de remoção. A Izidora existe desde 2013, mas somente em 2018 o Governo começou a regularizar parte da Ocupação. Muito em razão da resistência de uma população que permaneceu forte em um terreno que antes, estava vazio.

Já em “Na missão, com Kadu” os diretores Aiano Bemfica, Kadu Freitas e Pedro Maia de Brito conduzem uma abordagem mais direta, principalmente através da figura de Ricardo de Freitas, o Kadu, líder comunitário assassinado em novembro de 2015. Kadu serve como interlocutor entre a equipe de filmagem e os moradores. Podemos perceber mais uma vez a importância das figuras femininas nas ocupações através da militante Aninha, considerada como uma mãe por todos, como próprio Kadu faz questão de ressaltar.

O filme se concentra em abordar uma intervenção policial extremamente desproporcional ocorrida durante uma passeata dos moradores. São nas imagens feitas por Kadu que podemos perceber que havia uma grande concentração de mulheres com seus filhos e, ainda assim, mesmo que os moradores estivessem somente caminhando e anunciando a manifestação pacífica, os policiais atiram com balas de borracha, são jogadas bombas de gás de pimenta por um helicóptero e podemos acompanhar a angústia das crianças e suas mães.

Na narrativa, os diretores optam por mostrar as imagens através de uma exibição para comunidade organizada por Kadu. Somente depois que os moradores se concentram ao redor de pneus que servem como apoio e assentos para assistir o vídeo de Kadu, podemos ver as imagens que, por falta de palavra melhor, irei dizer que são chocantes.

A morte de Kadu ressignifica o filme, mas ainda que o líder não tivesse sido assassinado, a violência desproporcional do poder público já estava denunciada em tela. Em um dos momentos do conflito, um Kadu revoltado pergunta “É isso que vocês querem, gente? Tem criança!”.

Infelizmente, sabemos que no Brasil o extermínio da população pobre e preta funciona como política de Estado. Nada é acidental. Nem a morte de Kadu, nem a morte de João Pedro, jovem assassinado recentemente em São Gonçalo no Rio de Janeiro, nem a morte e o descaso com tantos outros corpos. Os territórios vazios aos quais me refiro nessa crítica são, sim os territórios ocupados, mas também esses corpos invisibilizados por gerações que conseguem resistir e se reconstruir a partir da luta em comunidade.

Infelizmente, sabemos que no Brasil o extermínio da população pobre e preta funciona como política de Estado. Infelizmente.


Ficha Técnica da Sessão

Casa com Parede (Dênia Cruz, 16″ — 2019)
Sinopse: Um assentamento urbano em remoção, após um incêndio que destruiu mais de 50% dos barracos. Mulheres, homens e crianças em mudança para tão sonhada moradia. Essa história é revelada de forma lúdica por uma criança de oito anos que viveu com sua mãe numa comunidade entre tábuas e lonas, mas que sonhava morar em uma casa com parede.
Ocupar, resistir e construir (Dayanne Naessa, Edinho Vieira, Juliano Vitral, Roberta Von Randow, 14″ — 2016)
Sinopse: Ocupar, construir e resistir é o lema das ocupações urbanas de Paulo Freire e Izidora, que reúne o maior conflito fundiário do Brasil, localizadas na Região Metropolitana de Belo Horizonte (MG). Neste universo de luta e manifestações pela moradia própria e ocupação da cidade, descortina-se o cotidiano de seus moradores na construção da casa, no trato om a horta e nas brincadeiras de crianças e jovens.
Na Missão, com Kadu (Aiano Bemfica, Kadu Freitas, Pedro Maia de Brito, 28″ — 2016)
Sinopse: No maior conflito fundiário urbano da América Latina, companheiras e companheiros da região ocupada da Izidora marcham pela moradia digna. Kadu traz de volta em sua câmera registros da marcha do dia 19/6/15. À beira do fogo ele relembra o dia, a luta e o sonho.

Mostra Lona – Como conquistar territórios vazios

Em constante construção e desconstrução Antropóloga, Fotógrafa e Mestre em Filosofia - Estética/Cinema. Doutoranda no Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) com coorientação pela Universidad Nacional de San Martin(Buenos Aires). Doutoranda em Cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Além disso, é Pesquisadora de Cinema e Artes latino-americanas.