Mostra Lona 2020: Tensões Territoriais

Mostra Lona 2020: Atravessamentos

Ameaçados

Dentro da programação da Mostra Lona 2020: Atravessamentos, a Sessão 03 foi disponibilizada online no dia 24 de maio com os curtas “Conte Isso Àqueles que Dizem que Fomos Derrotados“, “ZAWXIPERKWER KA’A – Guardiões da Floresta” e “Ameaçados“. Uma seleção que não apenas expõe o quanto a propriedade privada é um direito muito mais valorizado do que a lógica humanista se propõe a considerar. As obras selecionadas expandem lateralmente as vozes, demonstrando que as fricções resultantes das questões territoriais são muito mais complexas do que reducionistas querem fazer transparecer. E o faz de maneira a colocar os recursos provenientes do imagético a serviço de um audiovisual que se revela uma linha de raciocínio.

Conte Isso Àqueles que Dizem que Fomos Derrotados” fez parte da seleção de importantes festivais brasileiros ao longo do ano de 2018, como o Janela de Cinema do Recife. O curta que abre a sessão dá o tom dos perigos provenientes da aceitação do convite à luta, ainda mais de uma causa que envolve a relativização dos direitos dos mais poderosos. O grupo de quatro cineastas (Aiano Mineiro, Camila Bastos, Cris Araujo e Pedro Maia de Brito) transfere para a tela todo o caos e a dificuldade de entendimento ao longo de um processo de ocupação urbana na cidade de Belo Horizonte. Mais do que faltar espaço para se preocupar com o foco, é interessante observar como a câmera se comporta ao longo dos vinte minutos do curta. As cenas iniciais acompanham quase que por cima dos ombros dos documentados, mas chega um momento em que ela passa a nos revelar imagens a meia distância. Quase como se materializasse o afastamento que boa parte dos espectadores terão, de certa maneira. No avançar, esse distanciamento aumenta ainda mais, como reflexo do perigo que se aproxima. Para, ao final, se denotar impossível não se aproximar novamente, quase como um convite à participação.

Essa experimentação a partir da exploração de um território sob tensão também marca o tom do início do média-metragem “ZAWXIPERKWER KA’A – Guardiões da Floresta“, de Jocy Guajajara e Milson Guajajara. Antes que a impressão de que estaríamos diante de uma sessão puramente sensorial, com pouco uso das palavras se confirmasse, os cineastas reagem de forma a levar outras possibilidades àquele ambiente. A primeira metade nos coloca diante da questão ainda de maneira instintiva. Em uma ocupação reversa, destrutiva, a motosserra não é a única arma. Uma tensão causada pelo avanço, em que aquele que se acha dono sem ter direito tenta impor sua voz . Faz isso ao mandar o acesso ao seu gado ser liberado para “evitar um problema”. É sabido que o mesmo empresariado que coleciona propriedades sem função social em cidades como Belo Horizonte, controla o agronegócio de forma a adentrar vorazmente por territórios indígenas protegidos em áreas como o chamado “complexo verde” no Estado do Maranhão – onde residem as ações do filme. Configuração de território que pode fazer falta àqueles pouco informados sobre a região, visto que – ao contrário do longa “Quilombo Rio dos Macacos” da sessão do dia anterior, tais obras controlam mais sua linguagem, evitando descambar para peças exageradamente informativas.

Porém, a obra de Jocy e Milson nos mostra que, dentro desse arco de relações, não há apenas grandes barões. A quebra de expectativa de uma simples exploração do imagético se dá em uma deliberação entre as lideranças indígenas e pequenos agricultores. Toda a tensão das imagens se converte, finalmente, em palavras. É nítido o desconforto de todos ali, diante da desfaçatez do argumento de que dezenas de cabeças de gado simplesmente “fogem”.

Por conta de palavras que não são ouvidas e leis que não são cumpridas, o território segue sendo um elemento de disputa. Diante disso, a parte final do documentário se vale de outra tensão, esta causada pelo risco de enfrentamento. Momento em que as imagens se tornam mais potentes, com o deslocamento do grupo indígena nos trazendo a dimensão da destruição que já se identifica no território cada vez menos seu.

O final da sessão que aborda a complexidade de relações se dá com o curta “Ameaçados“, de Júlia Mariano. Na obra anterior fica no público uma certa provocação, a partir de um cena em que alguns homens a serviço da pecuária parecem apenas cumprirem ordem. Ao chegar em outro ponto da relação laboral, o terceiro filme conclui o mosaico da falência social, a partir dos pólos de exploração do trabalhador escravizado no Estado do Pará. O curta se inicia com um rápido discurso do ambientalista José Cláudio da Silva seis meses antes de seu assassinato. As cenas de seu enterro, de grande força em uma sequência de imagens já bastante poderosas, tem como objetivo trazer a morte como ponto central do documentário. Mostrando o que acontece ao fim de um processo de apagamento, o filme se propõe a trazer histórias de pessoas constantemente ameaçadas no Estado da Federação que concentra boa parte dos assassinatos de líderes ambientais. São quase mil desde o ano de 1964 (uma média de 20 mortes por ano), tudo sob a desculpa de manter em atividade a cultura escravocrata.

O filme de Júlia Mariano não é afeto a didatismo. Se apresenta com forte contextualização, pautado na multiplicidade de casos, estes abordados em depoimentos curtos e fortes. Não que não haja espaço para esclarecer alguns pontos, sendo o principal deles os métodos pelos quais um trabalhador chega à condição análoga à escravidão, um cenário que boa parte dos espectadores talvez entenda por algo excepcional – mas não é. Pois o fato é que as relações laborais se utilizam não apenas da constituição de uma dívida do empregado com o patrão – um método que remota ao período feudal. Há os processos de escravidão oriundos da grande distância entre a moradia do trabalhador e o local da prestação do serviço e há, claro, a proveniente do medo, necessitando do jaguncismo para se valer. Todavia, o grande êxito do filme parece ser as falas diretas dos indivíduos ameaçados. Quase todos contam suas histórias enquanto seguem fazendo as coisas mais corriqueiras, como cortar milho para suas galinhas ou preparar um almoço. “Ameaçados” encerra a terceira sessão da Mostra Lona cria um choque a partir do banal, posto que estar marcado para morrer é um fato que só resta ser normalizado naquele território.


Ficha Técnica da Sessão

Conte Isso Àqueles que Dizem que Fomos Derrotoados (Aiano Mineiro, Camila Bastos, Cris Araujo e Pedro Maia de Brito, 23″ — 2018)
Na madrugada, luzes apontam um caminho.
ZAWXIPERKWER KA’A – Guardiões da Floresta (Jocy Guajajara e Milson Guajajara, 50″ — 2019)
Nos limites do “complexo verde” formado pelas terras indígenas Caru, Awá, Alto Rio Guamá e Alto Turiaçu dos índios Guajajara e Awá-Guajá, que em um ano tiveram seis lideranças assassinadas, os Guardiões da Floresta lutam para proteger seu território, a última área de floresta contínua no estado do Maranhão. Em “Guardiões da Floresta” mergulhamos na tensão destes enfrentamentos na reserva do Caru.
Ameaçados (Júlia Mariano, 22″ — 2014)
No Brasil profundo, onde lei e justiça dependem de nome e sobrenome, a luta por um pedaço de terra vira uma questão de vida ou morte. Ameaçados mostra pequenos agricultores do sul e sudeste do Pará que lutam por um pedaço de terra para plantar e viver. *Produção CPT

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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