Mostra Lona 2020: Território e Pertencimento

Mostra Lona 2020: Atravessamentos

Mostra Lona 2020: Furna dos Negros | Do Corpo da Terra | Nove Águas

Nove Águas

A Gente tem Toda a História

Dentro da programação da Mostra Lona 2020: Atravessamentos a Sessão 05, disponibilizada em 26 de maio, tem como mote reunir três curtas que falem sobre a relação de pertencimentos dos sujeitos e suas subjetividades, ainda que em territórios conflituosos: “Furna dos Negros” (2017), “Do Corpo da Terra” (2016) e “Nove Águas” (2019).

O que é território? Território não é apenas o espaço geográfico no qual se concentram determinados grupos ou pessoas. Nele há conexão direta com a memória, afetos e construções de pertencimentos. A partir desse questionamento, a sessão trabalha com três curtas que tratam a questão de maneira penetrante, chegando até a raiz do problema.

Em “Furnas dos Negros” (2017), a primeiro obra da sessão, o diretor Wladymir Lima  aborda essas questões a partir de um território histórico, o local que já abrigou o  Quilombo dos Palmares, em Alagoas.

Os quilombolas que permanecem no local contam – e como a história oral é importante – a trajetória de seus ancestrais. As cenas no meio da mata, nos demandam interrogar porque é tão difícil permanecer em uma terra que, por ancestralidade, tem conexão com essas pessoas – na qual, possivelmente, não seria desenvolvido nenhum projeto, como já vimos ocorrer por parte dos governos que ali passaram.

A narrativa é focada em Gerson e Dominícia, primeiro casal a conseguir construir casa que lhes é de direito. Gerson narra  a construção simbólica que estabeleceu com o local através dos anos. Cita antigos moradores, dialoga a partir da história do local e mostra como tudo ali foi construído. ainda que pareça pouco para alguns, faz parte também de sua própria biografia.

Ao acompanhar a construção da residência, a partir do concreto e dos tijolos que o cineasta nos mostra que uma casa (que por si só tem já tem com ela o valor material e a quietude de poder dormir todos os dias em um local protegido), pode ser bem mais que apenas uma casa.

O reisado, aparece para reforçar essa relação de pertencimento com uma cultura, que vale mais do que uma terra, pois é território simbólico de uma luta que ainda vivemos. Ainda que o reisado de Gerson seja simples, sem muitos recursos, ele continua a tocar fazendo a poeira ancestral subir.

Continuemos a dançar e a cantar nossa cultura, mesmo com pouca estrutura. Essa sempre nos faltou. Que o reisado de Gerson dê frutos e seja repassado para novas gerações!

Em “Do Corpo da Terra” (2016), a diretora Julia Mariano também começa com os sons e imagens das matas. Tendo quatro mulheres como protagonistas percebemos que, por si só, a mata oferece uma relação mais próxima com o passado. Ervas e folhas que ainda hoje são utilizadas por benzedeiras urbanas e pelos banhos de limpeza nos terreiros. Para quem é do Rio do Janeiro, é só pensar no Mercadão de Madureira e para quem é de Belo Horizonte, no Mercado Central. Mas o próprio colher das ervas faz parte do ritual. Colher, saber escolher, identificar. Tudo isso é um diálogo direto com os negros escravizados que viviam naquelas terras.

Esse saber milenar, que também foi passado à essas lideranças do MST (Movimento dos Sem-Terra), é utilizado para também plantar a comida que lhes nutrirá o corpo. No entanto, ao saber para qual finalidade cada erva serve, elas são capazes de curar as dores de uma vida difícil. Refiro-me mesmo às dores físicas, de desgaste e correria para enfrentar os embates pela legalização do assentamento.

Ao voltar para o mato, essas mulheres entendem que terão que recuperar uma ancestralidade já esquecida por conta da vida urbana. Ter a consciência do próprio corpo e seus limites, não é tarefa habitual para quem vive nas cidades. Ao defender a utilização das ervas como remédios naturais, essas mulheres voltam sua atenção aos conhecimentos milenares de um povo. De seu povo, ainda que a questão central em “Do Corpo da Terra” não seja exatamente essa.

Julia Mariano é uma cineasta que prioriza falar de um conhecimento readquirido, sem tocar diretamente na questão dos quilombolas. Ao focar no acampamento do MST como troca de aprendizados e saberes da terra. Porém, todas as lideranças femininas do filme são pretas ou descendentes de indígenas e os nomes dos acampamentos falam por si: Zumbi dos Palmares, Dandara dos Palamares e Roseli Nunes, esta brutalmente assassinada em um protesto no ano de 1987. Roseli carregava em seu corpo misturas que sabemos existir no Brasil e que, para deixar menos complexo, definimos como pardos. No entanto, sabemos que ali há sangue preto e indígena. Pardos… Quem são os pardos senão aqueles aos quais foi retirada a possibilidade de compreender suas ancestralidade? Há que se pensar, então, em um retorno de saberes.

As folhas detém o poder da terra e dos Orixás. Que os assentamentos regressem às suas origens!

O filme que encerra a sessão, “Nove águas” (2019), de Gabriel Martins e Quilombo dos Marques, é passado no Vale do Mucuri e mostra o cotidiano do Quilombo Marques. Ao abrir passagem no meio das matas, um dos quilombolas parece nos convidar a conhecer seu território. As lavadeiras, as crianças, cada formato de pedra é visto sob outra perspectiva por essas pessoas. Talvez, nossa atenção esteja tão dispersa que sejamos incapazes de admirar o formato de uma pedra (prefiro acreditar que não).

Com uma fotografia em preto e branco que remete ao ano de 1930, “Nove Águas” ressalta os corpos desse quilombo, suas marcas, seus suores, seus contornos. Precisamos dizer que a narrativa é uma mistura entre o cotidiano e ficção.

A busca pela água encenada pelos quilombolas aflige, mesmo que saibamos ser encenação. Isto porque, caso continuemos a caminhar sem propósito (nós, povo da cidade) , ela pode se tornar realidade para todos.

Os símbolos são muitos. Um exemplo é o cará gigante, encontrado no meio da mata após receberem avisos de uma voz sussurrante. Cará, comida de Ogum, deus da força e coragem. É Ogum que abre nossos caminhos , assim como vimos o quilombola adentrar a mata – abrindo espaços, caminhos e chances de sobrevivências.

Logo em seguida vimos uma pequena romaria pedindo chuva. Com a força poderosa dos pretos-velhos que ali moraram, ela vem.

A luta é encenada, porém é real.

“Nove Águas” traz a cor quando retrata a vida no mesmo espaço em 1970. Ao fazer esse desnorteamento temporal/visual causado – já que a vida no passado nos parece bem similar à de 1970, com pequenas mudanças em relação ao conforto – também nos leva a entender outra coisa. Talvez, mais grave do que as próprias escolhas estéticas, visto que para essas pessoas a temporalidade é indiferente, pois a estrutura de submissão e perversidade permanece a mesma.

Sendo em 1950, 1950 ou 2020 a realidade de uma parte do povo não muda. Assim, as rodas como espaços de sociabilidade, alerta e lazer se tornam extremamente importantes nesse sentido. Novamente, alerto para o poder da oralidade.

“A própria Lei fala que quem define quem é Quilombola ou não é o próprio povo. Não é antropóloga, com desculpa à senhora que está aqui”, diz um dos aquilombados ao ser questionado sobre suas origens.

Devemos lembrar, então, como nosso trabalho como divulgadores e apoiadores de movimentos precisa ser extremamente cuidadosa, para que não falemos pelo outro.

Há que se abrir caminhos, sem deixar os que mais necessitam para trás.

Talvez esse seja, em “Nove Águas”, um dos momentos mais sensíveis para se pensar no que queremos construir juntos e como fazer com que essas pessoas não fiquem de fora dessa nova reconstrução.

Porém, justamente por ser difícil, é de extrema urgência.

Fácil, nunca o será.


Ficha Técnica da Sessão

Furna dos Negros (Wladymir Lima  29min — 2017)
Depois de anos vivendo em barracos de lona e madeira, Gerson e Dominícia são os primeiros quilombolas a conquistar as casas de alvenaria a que têm direito, na mesma região que um dia abrigou o mítico Quilombo dos Palmares, em Alagoas. E tudo começou a partir de uma pequena caverna, conhecida hoje como a Furna dos Negros.
Do Corpo da Terra (Julia Mariano 24min — 2016)
“Do corpo da terra”, dirigido pela cineasta Julia Mariano, retrata como quatro mulheres do Setor de Saúde do MST mudaram suas vidas na relação com a terra e com seus corpos.
Nove águas (Gabriel Martins e Quilombo dos Marques 25min — 2019)
Em 1930, Marcos e seu grupo saíram do Vale do Jequitinhonha rumo ao Vale do Mucuri. Fugindo da seca, da fome e da violência no campo, Nove Águas traz a história de luta por água e terra protagonizada pelos moradores do Quilombo Marques, no Vale do Mucuri, em Minas Gerais.

Mostra Lona 2020: Furna dos Negros | Do Corpo da Terra | Nove Águas

Em constante construção e desconstrução Antropóloga, Fotógrafa e Mestre em Filosofia - Estética/Cinema. Doutoranda no Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) com coorientação pela Universidad Nacional de San Martin(Buenos Aires). Doutoranda em Cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Além disso, é Pesquisadora de Cinema e Artes latino-americanas.

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