Mostra Lona 2020: Yvy Renõi, Semente da Terra | Pra se contar uma história | Ava Yvy Vera
As Diversas Maneiras de Viajar
No dia 29 de maio foi disponibilizada a Sessão 08 da Mostra Lona 2020: Atravessamentos, com os curtas-metragens “Yvy Renõi, Semente da Terra” (2017) e “Pra se contar uma história” (2013), além do média-metragem “Ava Yvy Vera” (2016). Trata-se da sessão mais imersiva do festival, que contou com uma programação diversificada de linguagens e narrativas. Obras iniciais que trazem duas propostas distintas que se entrecruzam no filme final, partindo do protagonismo do opressor até o abandono total de sua existência – oxalá isso fosse possível.
“Yvy Renõi, Semente da Terra“, do Coletivo ASCURI, inicia nossa jornada a partir da provocação do desgosto. A primeira proposta de linguagem, a informativa, traz consigo uma visita de Jair Bolsonaro a Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul no ano de 2016. Ali o então Deputado Federal se lançava como presidenciável, em uma época em que poucos acreditavam no nível de distopia o qual o Brasil atingiria dois anos depois, quando o mesmo foi eleito para, teoricamente, comandar a nação. O curta-metragem é fundamental para quem ainda duvida da relevância e importância da manifestação daquele que é visto como um líder.
Odeie pouco ou odeie muito as ideias de Bolsonaro, fato é que algumas dezenas de milhões de pessoas chancelaram seu projeto nas urnas em 2018. O projeto dele está sucintamente exposto na obra do Coletivo ASCURI – a destruição dos povos originários. Em poucos minutos de projeção relembramos a dimensão da presença de alguém que encoraja ruralistas e milícias de fazendeiros a levar adiante seus planos genocidas. O atual Presidente da República do Brasil sempre foi aquilo ali, um agitador – que teve posições galgadas e foi levado pelo colo por um sistema que não sossegará enquanto não acabar com as minorias, vulneráveis, invisibilizados ou silenciados do país.
Ultrapassado esse descarrego do curta-metragem de abertura (lembrando que nada que ali foi dito é – ou era à época – algo novo), fica o medo do questionamento sobre o quanto daquela sociedade em conflito de 2016 retratada em “Yvy Renõi, Semente da Terra” sobreviveu a um ano e meio de Governo Bolsonaro.
“Pra se contar uma história“, a segunda obra da sessão, traz a segunda proposta de linguagem, sendo mais expositiva. Sai o ar de denúncia ou a documentação severa e entre o equilíbrio entre o que é dito e o que é mostrado. Uma viagem à comunidade quilombola Santiago do Iguape, em Cachoeira, na Bahia. Os quatro cineastas (a saber: Elen Linth, Lucicleide Santos, Diego Jesus e Leandro Rodrigues) provocam a imersividade do espectador a partir de multiplicidade de rostos. Apostam na representação das idades e gêneros e avançam o curta-metragem até que essa pluralidade se estenda a fases do dia e elementos da rotina.
O uso da luz natural, mais do que o som, é um dos destaques desse curta-metragem. Uma proposta de narrativa frágil, conduzida com uma transição de imagens pelas cores do final de tarde. Todavia, o mais fundamental em “Pra se contar uma história” é se vincular com o filme anterior a partir da projeção de um realizador local. Enquanto o Coletivo ASCURI protagoniza “Yvy Renõi, Semente da Terra” por trás das câmeras, a grande personagem da produção que lhe segue é Neguinha, uma fotógrafa moradora da comunidade quilombola. É com seus olhos que a equipe enxerga Santiago do Iguape e, por isso, não poderia ao final ter usado uma estética diferente do que a provocação de imersão.
A sessão se encerra com o média-metragem “Ava Yvy Vera“, com oito realizadores creditados (a saber: Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonatan Gomes, Edina Ximenez, Dulcídio Gomes, Sarah Brites, Joilson Brites). O grupo, da liderança de tekoha Guaiviry também no Mato Grosso do Sul, opta por uma sequência inicial belíssima, que nos permite a conexão imediata com o território. A câmera pouco se move e vemos enormes plantações, enquanto a voz de um representante dos Guarani-Kaiowa, de modo a informar e emocionar, começa contando como foi aberto o caminho para a soja pelos inimigos da terra. Encerra concluindo que a escalada da riqueza bota em risco a existência daquela cultura.
Essa junção de uma montagem imersiva com testemunhos, em muitos momentos, se vale de um exagero na potencialização dos sons da região. Porém, as imagens que docemente vão se revelando e dando espaço para outras em “Ava Yvy Vera” tiram todo o amargo da boca do curta-metragem que abre a sessão, carregado de violência e do uso da figura do atual Presidente.
De certo modo, estamos diante de uma trinca de obras complementares, todas com a marca do protagonismo dos representados, que também produzem as obras. Sem dúvida elas comungam na mensagem, na dura certeza de que o futuro reserva um rastro de destruição e morte. Culpa de um projeto de extinção de qualquer registro dos povos originários do que foi convencionado chamar de Brasil. Seja na informação e na denúncia ou seja na contemplação e na imersão, são filmes com um forte poder de transportar o espectador de um festival online para uma realidade inimaginável. Se bem que, no mundo de 2020, fisicamente já não poderíamos nos transportar para lugar algum mesmo. Perto do fim da programação, a Mostra Lona deixa exposta nossa carência por mais vida.
Ficha Técnica da Sessão
Yvy Renõi, Semente da Terra (Coletivo ASCURI, 15″ — 2017)
A luta dos Kaiowa e Guarani da aldeia Teykue pela retomada do seu território tradicional é marcada por disputas de terra. Em junho de 2016, um novo ataque financiado por ruralistas resultou em mais um indígena morto e quatro feridos. 90 cápsulas de balas foram encontradas na retomada e inúmeras marcas de tiros. Nenhum fazendeiro foi preso. Tudo isso acontece cinco dias após a visita do atual presidente Jair Bolsonaro (então no PSC/RJ) a Campo Grande. Coincidência?
Pra se contar uma história (Elen Linth, Lucicleide Santos, Diego Jesus e Leandro Rodrigues, 25″ — 2013)
Na comunidade quilombola Santiago do Iguape, Neguinha conta uma história de resistência.
Ava Yvy Vera (Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonatan Gomes, Edina Ximenez, Dulcídio Gomes, Sarah Brites, Joilson Brites, 54″ — 2016)
Terra é lugar de conhecimento, de resistência e encanto. É lugar de reestabelecer a comunicação com os ñanderu, de viver a vida de reza, roça, escola, família extensa, chicha, chima, terere, guahu, kotyhu. Para os Guarani e Kaiowa no MS retomar as terras tradicionais, tekohas, é retomar a possibilidade de viver o seu modo de ser, o seu teko. Realizado por um grupo de jovens e lideranças da tekoha Guaiviry coloca em relação a narrativa da luta que culminou na retomada do território onde vivem hoje e a afirmação cotidiana da vivência do teko no Guaiviry.
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