Sinopse: Diante da iminente transformação de seus lares em uma verdadeira cidade fantasma, moradores do Conjunto Habitacional Muribeca expressam a morte física de uma comunidade ainda viva na memória e nos sentimentos. O desaparecimento do bairro (em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco), devido a problemas estruturais, à especulação imobiliária e a um longo e turvo imbróglio entre moradores e órgãos responsáveis pela obra, é testemunhado a partir de resiliências e resistências, de paisagens afetivas e lembranças, que ora buscam abrigo na nostalgia, ora reacendem a chama resoluta da esperança.
Direção: Alcione Ferreira e Camilo Soares
Título Original: Muribeca (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 18min
País: Brasil
Obituário de um Território
Se há um debate fundamental na sociedade, que tem o poder de contemplar grande parte das questões urgentes, é aquele que envolve o direito à habitação – e sua consolidação enquanto garantia. “Muribeca“, documentário que faz parte da mostra de longas-metragens contemporâneos da 16ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, é mais um exemplar que nos permite – a partir de uma lupa em um caso no município de Jaboatão dos Guararapes, município da região metropolitana do Recife – dimensionar a distância a qual estamos de identificar um Estado provedor de dignidade para seu povo.
A história surge a partir de uma remoção forçada da comunidade, que não possui responsabilidade pelas edificações carregadas de problemas estruturais. Sem que os problemas fossem resolvidos, a mediação entre o poder institucionalizado e o capital será sempre marcada por muita cordialidade e ausência de conflito, resultado em mais de duas mil pessoas recebendo ordem de despejo no ano de 2019. O filme, então, surge como este obituário de um território pelas mãos dos diretores Alcione Ferreira e Camilo Soares (o segundo diretor de fotografia de, dentre outros, “King Kong en Asunción“, o que diz muito sobre seus objetivos na perseguição imagética).
Imagens de arquivo trazem o contraste dos sopros de vida de “Muribeca“. Interações sociais que vão dos carnavais de rua às celebrações religiosas, em um esfuziante pulsar de uma sociedade com hora marcada para perecer. Depoimentos atestam o óbvio – que há algo além do direito à moradia de “algumas centenas” de família. O Estado vê as conquistas de seu povo como coisa menor, como obstáculo no caminho da burguesia. Desta forma, a especulação imobiliária cada vez mais devasta o país, em uma consciente derrota da classe trabalhadora. Crises fabricadas e que em momentos como o que vivemos deverão se amplificar na tática de precarizar direitos e destruir conquistas. Temos aqui o registro do fim de um ciclo econômico, que supera aquelas residências, que tira emprego, que destrói hábitos e, principalmente, cultura.
A opção dos cineastas pela frontalidade dos planos é uma das que mais encantam neste tipo de obra. Em boa parte do tempo o espectador é colocado como agente passivo de uma narrativa pelo qual possui total descontrole. Esta impotência é relevante para o resultado final, o de terra arrasada – antes que retornemos para a frontalidade nos créditos, quando reencontramos os depoentes. Uma sensação que começa logo nos primeiros minutos, que apresentam espaços vazios, com mato alto, muitas folhas no chão – e vai seguindo no desenvolvimento do longa-metragem com praças desertas e brinquedos sem crianças, propositalmente mexidos como se acabassem de ser abandonados – em um senso de urgência, mesmo que silencioso.
Sem a garantia do direito à habitação, o povo segue refém dos poderosos, tanto estatais quanto financeiros. Retirar daqueles que legitimamente exercem esta garantia, sem a contrapartida imediata, é ainda mais torpe. A obra consegue dimensionar esta desoladora crueldade, de um mundo que se esvai, em sons e cores. Não parece nenhuma coincidência o primeiro arquivo utilizado ser o do encontro da comunidade em dia de jogo do Brasil em alguma Copa do Mundo onde a camisa amarela da CBF nos dava uma percepção diferente a de um pano de chão de uma era liberal fascista.
O filme ainda encontra espaço para ilustrar de maneira lúdica a derrota por meio de expressões artísticas de moradores, como Manoel Carlos, apontado como agitador cultural local. Ilustrações nas paredes prestes a serem demolidas, música e dança nos escombros – até, perto do fim, o rapper Lucas Ávila apresente sua obra “Resistência Muribeca“, com uma leitura representativa do que ocorre naquele espaço – e que optamos por deixar como vídeo ao final desta crítica. Vilipendiar a moradia aos mais humildes não reflete apenas um desrespeito constitucional. Também é elitismo classista, racismo e todo o tipo de atravessamento que a sociedade brasileira pode encontrar.
Portanto, de certa forma, o que parece ser um conjunto de resistências individuais é, na verdade, uma luta política, social e cultural daquela comunidade. Perto do fim, “Muribeca” vai ganhando ares de réquiem, trocando a ópera clássica pelo moderno rap de Lucas. Antes que tudo virasse pó, a consciência daqueles moradores que foram obrigados a testemunhar seu passado se dissolver diante dos seus olhos deixa para nós uma certeza: a classe empresária continuará esmagando os trabalhadores deste país. Além de “quem”, devemos sempre adicionar um “onde” e nos perguntarmos ao final de uma sessão como esta: onde será a próxima vítima?
Ouça “Resistência Muribeca”:
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