Porque, como diria o poeta e morador de rua Kauex: “São Paulo à noite, o mundo se divide em dois“.
Sinopse: O censo de 2019 indica que a população em situação de rua de São Paulo é de quase 25 mil pessoas. Espremidas entre a especulação imobiliária e a violência, vão resistindo à própria sorte nas ruas do centro da capital econômica do país. Sem acesso aos serviços de saúde, em tempos de Corona Vírus, a situação vai ficando ainda mais alarmante.
Direção: Ellen Francisco
Título Original: Na Fila do SUS/Episódio 1 – O Povo da Rua (São Paulo) (2020)
Gênero: Documentário
Duração : 16 min
País: Brasil
O Governo Não Tá Nem Aí Pra Nós
“Na Fila do SUS” é uma websérie elaborada por Ellen Francisco, profissional da área de saúde, e que conta com o apoio do ASFOC / SN – Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz e a realização da Bombozilla, que possui uma apostila especial aqui na Apostila de Cinema. Como parte de minha reflexão, utilizo uma constatação básica: nós, que temos acesso aos bens vitais (água potável, comida, banheiro higienizado separado do nosso local de alimentação) entendemos a necessidade de saúde ou de um profissional da área somente quando saímos do nosso cotidiano e os precisamos para assuntos pontuais (sejam eles graves ou passageiros). Portanto, a saúde só bate em nossa porta de vez em quando.
Para a população moradora de rua, ela é uma luta cotidiana. Entender a saúde como uma palavra mais ampla talvez seja necessário para compreender a importância e o impacto que a série tem (tanto que vem sendo bem recebida entre os profissionais de saúde).
Tendo isso em mente (e espero, como provocação que essa realidade persiga o pensamento de todos nós), entendemos que figuras como o Padre Julio Lancelotti e o médico Flávio Falcone são essenciais para que o mínimo de saúde chegue aos moradores de rua de São Paulo.
É justamente com eles que “Na Fila do Sus” começa. Padre Julio aponta o mercado imobiliário como um eixo central para se pensar o crescimento da cidade, mas também a maneira como os moradores de rua são tratados. Eles atrapalham, dificultam, fazem muita gente perder dinheiro. No entanto, eles perdem a vida.
Com grande sensibilidade o médico Falcone entende que precisa de estratégias para ter acesso à essa população já tão massacrada. Ele encontra na palhaçaria uma maneira de aproximação não hierarquizante. Ali, naquele momento de cumplicidade, ele se coloca igual ao morador de rua. Encontra o humano possível em toda aquela situação.
São pessoas que continuam a viver seus relacionamentos afetivos, suas festas, engravidam, ficam doentes, morrem. São pessoas. Na Antropologia, definimos como sociedade todo conjunto de pessoas capazes de produzir cultura. Cultura lida como tudo aquilo que, ao ser modificado pelo homem, torna-se outra coisa.
Acredito que, ao trabalharmos com um conceito mais amplo sobre saúde e cultura, poderemos entender que esse povo também a produz. Em meio a todas as dificuldades, podem ser entendidos como uma cultura da rua desde a roupa elaborada através de retalhos encontrados e/ou doados, até a música. Em determinado momento, Padre Lancelotti diz: “Eu sei que a gente que luta pela vida vai ser crucificado“.
O que ele diz é forte. Para além de qualquer religião que possamos exercer, as falas de Lancelotti revelam uma sociedade que vive em guerra cotidiana, só não a institucionaliza. Assim, os corpos mortos, apedrejados, feridos não chegam aos nossos olhos ou, quando chegam, o fazem em número muito menor. Dessa maneira, não sabemos efetivamente quantos pretos, pobres e moradores de rua morreram nessa epidemia da COVID-19, mas já não o sabíamos antes.
O projeto de Estado que o Brasil construiu durante essas centenas de anos e mostrado em “Na Fila do Sus” é um processo racista, segregador e classista. É quase como um jogo no qual se solta a pessoa completamente vulnerável para deixar que ela morra de “morte vivida”. Depois dizemos: “Mas, morreu de causas naturais.”
Quantos morreram assim? Quantos morrem? Quantos ainda morrerão?
A Antropologia diz que, ao compreender a cultura do outro, ao nos aproximarmos, humanizamos aquele grupo. Nesse episódio, podemos ouvir que a alegria humaniza.
Fico com as duas percepções, pois para entender a cultura do outro é preciso estar disposto a entender suas tristezas e felicidades.
“A alegria humaniza“.
Agora é o momento de pensar em como iremos nos aproximar desses corpos e, de outros cotidianamente ultrajados, com um olhar verdadeiramente amplo sobre a situação da população de rua, não somente em São Paulo, mas no Brasil. Não podemos deixar que o discurso de segregação dessas pessoas venha vinculado ao de proteção estatal. Não o é.
Porque, como diria o poeta e morador de rua Kauex: “São Paulo à noite, o mundo se divide em dois“.