Na Trilha do Sol

Na Trilha do Sol Crítica Filme 1996 Michael Cimino Pôster

Sinopse: O jovem Brandon “Blue” Monroe não teve uma vida fácil: viveu pelas ruas e hoje, aos 16 anos, está preso por ter assassinado seu padrasto abusivo. Até que ele descobre que tem um tumor inoperável e apenas um mês de vida. Em “Na Trilha do Sol” ele decide, então, sequestrar seu rico médico oncologista, Michael Reynolds. Os dois estão indo para uma área sagrada do povo Navajo, no Arizona, onde Blue pensa que pode encontrar uma cura. Ao longo da viagem, ambos sofrerão uma transformação espiritual.
Direção: Michael Cimino
Título Original: The Sunchaser (1996)
Gênero: Crime | Drama
Duração: 2h 2min
País: EUA

Na Trilha do Sol Crítica Filme 1996 Michael Cimino Imagem

Cimino, O Homem Condenado

Michael Cimino chega ao Petra Belas Artes à La Carte, um dos melhores serviços de streaming do Brasil – como não me canso de repetir – com “Na Trilha do Sol“, último longa-metragem que dirigiu, lançado em 1996. Uma ótima oportunidade para revisitar o que se tornou a carreira de um cineasta apontado como peça-chave para o fim de um dos ciclos mais criativos do cinema norte-americano, a Nova Hollywood, e que foi acolhido na redescoberta de uma geração que tem nas mãos praticamente qualquer obra que deseja assistir.

Ao final da sessão online a qual a Apostila de Cinema foi convidada, saquei da prateleira empoeirada pelos anos de Kindle a única edição de um raro exemplo da pequena bibliografia sobre Cinema traduzida para o português e lançada no Brasil. “Como a Geração Sexo, Drogas e Rock’n’Roll Salvou Hollywood“, de Peter Biskind, tem uma ferramenta que faz qualquer operador do Direito e pesquisador em geral se emocionar: um índice remissivo. Lá pude recapitular os momentos em que Cimino aparece, explodindo ao final da onda de diretores com o clássico absoluto “O Franco Atirador” (1978). O estrondoso sucesso fez a United Artists deixar de lado um dos projetos mais promissores de Martin Scorsese, “Touro Indomável” (1980) para concentrar seus esforços em “Portal do Paraíso“, gigante realização de Michael – e que faliu o estúdio responsável por grande parte dos filmes daquele período.

Dali em diante, Cimino ficou marcado e todas as produções que seguiram foram atacadas pela imprensa. No próprio livro citado há uma frase do crítico Vincent Canby, extraída da publicação inédita no país “Final Cut“, onde Steven Bach conta todas as intempéries que fizeram “Portal do Paraíso” uma mistura catastrófica de bastidores de “Cleópatra” com “Apocalypse Now“. Ele escreveu no New York Times: “o filme é um fracasso tão completo que se pode suspeitar que o sr. Cimino tenha vendido a alma ao diabo em troca do sucesso de O Franco Atirador e que agora o diabo tenha voltado para cobrar”. A jovem cinefilia brasileira, rata de Letterboxd e se equilibrando entre leituras clássicas e novas propostas audiovisuais, são quase unânimes em atestar a incompetência dos seus colegas norte-americanos. Porém, esta manifestação de Canby mostra como o poder da caneta conseguia derrubar reputações.

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Na sequência da receptividade ruim, vieram os fracassos de bilheteria e a chacota de nome Framboesa de Ouro (Razzie Awards). Foram apenas quatro filmes lançados por ele até seu falecimento em 2016 – além de um segmento de “Cada um com Seu Cinema” (2007). “Na Trilha do Sol” não deixa de apresentar um Michael Cimino que atira para todos os lados, que reúne linguagens, que tenta levar o melhor do auge de sua carreira para o contexto de um cinema noventista. O Festival de Cannes não esperou a redescoberta e acolheu o cineasta, exibindo o longa-metragem, realizado pela Warner, na mostra competitiva.

O filme conta a história de Michael Reynolds (Woody Harrelson), um médico que é sequestrado por Blue (Jon Seda), jovem de 16 anos que está com câncer em caráter terminal. O que parecia a trajetória de um homem que não tinha nada a perder, vai se transformando em uma jornada de fé. Descendente da etnia navajo, um dos povos originários ameríndios, o garoto tenta compreender e buscar a salvação da doença. Mais adiante saberemos que a filosofia aplicada pelo grupo vê a humanidade como um grupo de seres insignificantes e que cabe a nós buscar a harmonia com a Natureza. Cimino, então, parece fazer do seu filme parte desta busca. Ele traz para o projeto Charles Leavitt, em seu primeiro roteiro. Outro que teve poucas oportunidades, com menos de dez trabalhos na carreira, incluindo “Diamante de Sangue” (2006), este sim sucesso de crítico e público da Warner.

Sendo assim, somos levados por um thriller policial, com representações urgentes e câmeras que captam quase sempre os rostos dos dois personagens, entre ameaças de revólver e perseguição de carros. E transportados para um ato final esplendoroso na reserva indígena Navajo, nas proximidades da região conhecida como Monument Valley, entroncamento de quatro Estados norte-americanos. Em um deles, o Colorado, está Dibé Nitsaa, a montanha sagrada que Blue persegue. A construção da narrativa se vincula a algumas questões comuns ao período de sua realização. Dramas sobre a finitude da vida e a morte precoce por doenças cruéis, principalmente o câncer, era o mote de algumas obras. Deixava de ser plot twist, como “Laços de Ternura” (1983), quase um coringa narrativo tal qual aquela tosse que vira tuberculose na Era de Ouro (ou na Literatura do Romantismo). Passa a ser a premissa, como “Filadélfia” (1993), sucesso lançado três anos antes, faz com HIV.

Quando começamos a acompanhar os passos de Blue parecia que estávamos diante de uma atitude impensada e desesperada do personagem. Lembrando o protagonista vivido por Denzel Washington em “Um Ato de Coragem” (2001), lançado nos anos 00 mas um filme tipicamente noventista sobre um homem que faz refém a emergência de um hospital para salvar o filho que precisava de um transplante de coração. Dirigido por Nick Cassavetes (filho de Joh com Gena Rowlands e aniversariante da semana), outro que também merecia um acolhimento maior da crítica. Porém, a diferença é que Blue mostra que suas decisões foram, em certo grau, planejadas. Se não calculadas, pelo menos premeditadas. Isso faz com que o desenvolvimento do filme nos deixe no mesmo grau de conhecimento de Michael (ou tão perdido quanto), mas sem que nosso sequestrador tenha plena capacidade de nos conduzir.

Veja o Trailer:

Na Trilha do Sol” se vale de um ritmo de incertezas que funciona bem e abre espaço para o lirismo. Cimino faz isso em uma cena com Anne Bancroft, que interpreta Renata, uma mulher que dá carona aos dois em determinado momento. Neste ponto que a câmera do diretor vai deixando ser sufocante e começa a abrir nosso campo de visão. A discussão entre os três, que falam sobre fé, ciência e astrologia, é uma quebra de narrativa muito interessante. Se Blue começava a ganhar um ar pastoral, despindo-se da manta protetora violenta que o fez chegar até ali, Renata irá moldar esse auto de fé do protagonista. Sua presença finalmente deixa de ser um incômodo, que não parecia ser superado mesmo quando ele demonstrou fragilidade. O trabalho de Jon Seda surpreende pela forma como ele transita da crueldade ao medo e, por fim, à hesitação.

Por outro lado, Woody Hareelson faz um médico que perde toda a sua base de imediato e só entende o que está acontecendo quando para de buscar voltar ao ponto onde estava – o que se mostrou impossível desde que o paciente apontou a arma para ele pela primeira vez. Um cirurgião bem-sucedido, oriundo de Harvard, com esposa e filhos e a ponto de conseguir um cargo na diretoria do hospital. O choque inicial por saber que o jovem que estava tratando assassinou o próprio padrasto começa a ganhar contornos de terror quando ele é levado para a zona periférica de Los Angeles. Ali Michael entende que viverá coisas que nunca imaginou e que, se não fosse a iminência de tomar um tiro, jamais perceberia. Com o tempo, o espectador ganha informações sobre o passado do doutor e entende que em sua história há ferramentas que o auxiliarão a perder a sensação de onipotência, a mitigar a autoconfiança e fazer com que ele reflita sobre seu ofício, sua função no mundo e a importância da fé.

Aqui está outra constante em dramas norte-americanos dos anos 1990. Em um dos mais famosos, William Hurt vive outro cirurgião, que atinge o grau de desconexão com elementos emotivos e se torna um médico exemplar. Até que ele descobre um tumor maligno. “Um Golpe do Destino” (1991) já evitava a doença como ponto de virada, é parte importante da construção da narrativa e coloca a função do médico no centro da obra. Um diálogo com “Na Trilha do Sol” curioso e que também comprova o quanto Cimino desdobra seu filme em representações que um texto como este – mesmo um pouco extenso – não conseguiria atingir.

Para citar alguns, o interesse da imprensa sobre o caso, pelo olhar de Michael, é um deles. Em determinado momento, observamos os noticiários confusos porque temos um homem que passou a se comportar fora do padrão que a sociedade que ele reproduza. A maneira como Blue lida com sua ancestralidade também. Ele parece apostar que ali está sua salvação, mas em momentos mais agudos ele recua, hesita. Acostumado a ter o controle da situação, de arma em punho, tem dificuldades em deixar o imponderável agir. E ali revela seu medo da morte. Camadas que o pragmatismo que o espectador e “entendedores” nos Estados Unidos evitam e acaba jogando aos leões potenciais obras-primas sem ao certo entender o porquê.

Um dos elementos mais marcantes do filme também se desenvolve da mesma maneira que a narrativa. A trilha sonora de Maurice Jarre chega chutando a porta, logo nos créditos. Depois, ela é funcional, tal qual um bom thriller o faz. Até que a parte final, na Reserva Shiprock, abre espaço para o resgate da forma clássica. Compositor de um dos temas mais lindos, daquele que sigo defendendo ser até hoje a insuperável criação de Hollywood, “Doutor Jivago” (1965), o francês faz um trabalho que casa perfeitamente com as intenções de Cimino. A grandiosidade das paisagens é similar à trilha, todas exploradas em uma bela sequência que une cavalos e um carro.

Jarre e Cimino nos anos 1990. Um diálogo improvável. O cara das músicas dos filmes de David Lean e o cara que faliu a United Artists. Por fim, as canções que fazem uma ótima transição narrativa chega ao ápice nos créditos, resgatando “What A Difference a Day Makes“, um dos grandes sucessos da carreira de Esther Philips, que nos deixou com apenas 48 anos e fala um pouco desses dias que mudam para sempre nossas vidas.

Na Trilha do Sol” foi o maior fracasso da carreira do diretor. Ao custo de trinta milhões de dólares, arrecadou ridículos trinta mil. Tão pouco que não enxergar uma boa dose de boicote é acreditar que destruir reputações a troco de nada é válido. Não foi a primeira e nem a última vez que a indústria audiovisual norte-americana tratou assim alguns de seus filhos rebeldes. Só que agora você pode dar seu próprio e descontaminado veredito.

Ouça What A Difference a Day Makes, de Ester Phillips:

 

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Como funciona: Planos de assinatura com acesso a todos os filmes do catálogo em 2 dispositivos simultaneamente.
Valor assinatura mensal: R$ 9,90 | Valor assinatura anual: R$ 108,90.
Catálogo conta, até o momento, com mais de 400 obras – incluindo “Na Trilha do Sol“.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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