Sinopse: Biografia de um dos pioneiros do Carnaval como o conhecemos hoje. Embora mal conseguisse dançar ou tocar um instrumento, tornou-se um dos principais compositores da Portela, uma das primeiras e mais famosas escolas de samba do Rio de Janeiro.
Direção: Paulo César Saraceni
Título Original: Natal da Portela (1988)
Gênero: Biografia | Drama | Musical
Duração: 1h 40min
País: Brasil | França
Cultura Popular Esquematizada
“Natal da Portela” nos traz uma conexão diferente da relação entre Brasil e França tal qual mencionado em nossa crítica de “Orfeu Negro” (1959), no artigo de Roberta Mathias sobre o mito de Orfeu e na entrevista com o sociólogo e pesquisador Edson Farias sobre filmes que usam o Carnaval carioca como pano de fundo. Dirigido por Paulo César Saraceni, essa produção lançada em 1988 e parte da Semana dos Realizadores do Festival de Cannes, é reflexo do abandono da cultura, principalmente o cinema, promovida entre o fim da Ditatura Militar e o governo de Fernando Collor de Mello.
Um marco dessa crise é o sucateamento e consequente extinção da Embrafilme – aqui ainda creditada. Se na época do longa-metragem dirigido por Marcel Camus vivíamos um crescimento tanto da popularidade do audiovisual quanto da projeção internacional, aqui as coproduções se revelariam verdadeiras tábuas de salvação para orçamentos cada vez mais limitados de produção. Talvez por isso a obra de Saraceni não tenha dificuldades em angariar grandes nomes para seu elenco. O filme reúne alguns dos grandes atores e atrizes negros de todos os tempos, como Zezé Motta e Zózimo Bulbul – além claro, do protagonista vivido por Milton Gonçalves e de Grande Otelo, que tem para si os primeiros minutos de projeção no papel de Seu Napoleão, pai de Natal.
Chama a atenção na cópia que a Apostila de Cinema teve acesso por conta da programação especial do Carnaval de 2021 o restauro, de boa qualidade mas que, notadamente, revela um quase abandono do material de origem. Os reflexos de um política pública cultural que precisa viver de renascimento e depende dos ventos que movem a democracia em uma sociedade imprevisível como a brasileira, são sentidos em pouco tempo. Estamos diante de um longa-metragem de pouco mais de trinta anos, que nos entrega uma versão até com alguns frames faltando, sacrificados no processo de recuperação.
Há uma necessidade da narrativa ser mais universalista do que produções geridas e pensadas totalmente dentro do país. Grande Otelo ser a primeira voz a ser ouvida não é por acaso, estamos falando de um profissional que em 1969 deixou seu nome marcado no cinema com “Macunaíma“, mas que na década que antecedeu o lançamento de “Natal da Portela” tinha feito parte do elenco de “Fitzcarraldo” (1982) de Werner Herzog muito bem recebido no Festival de Cannes e revisitado seu encontro com Orson Welles em 1986 com o lançamento de “Nem Tudo é Verdade“, de Rogério Sganzerla.
Por isso, há uma câmera de Saraceni que passeia em um estilo de musical clássico, transformando a abertura em um roda de samba improvisada. Estamos em 1923 e Donga e Ismael Silva levam a música popular brasileira para um caminho diferente, ao ponto de criar problemas de identificação (o primeiro sambista seria considerado por muitos cantador de marcha e o segundo de maxixe). Por sinal, um cruzamento de ritmos bem parecido com o que estamos vivendo atualmente, com a união de sons sintéticos com levadas regionalistas que parecem colocar boa parte dos artistas populares no mesmo barco – ao ponto deles gravarem canções em conjunto sem conseguirmos identificar qual o ritmo, de fato, prevalece.
Esse universalismo da narrativa faz o filme soar um pouco mais didático – e ainda não ser tão afiado no que diz respeito à trajetória de vida do protagonista. Essa contextualização necessária terá reflexos em saltos temporais que, caso estivéssemos diante de um desfilo de escola de samba, talvez tirasse pontos de evolução. Por sinal, Edson Farias nos lembra na entrevista que “Natal da Portela“, assim como “Orfeu” (1999) surge em conjunto com um desfile. Nesse caso, o da Tradição de 1987, com o samba “Sonhos de Natal“. Nascendo enquanto dissidência da Portela, os cinco primeiros anos da agremiação nos grupos de acesso tiveram sempre composições dos mestres João Nogueira e Paulo César Pinheiro, que surgem no epílogo quase como um eastern egg para iniciados.
Essa ideia por trás das criações das escolas de samba é parte do didatismo do filme. Opta-se por ser mais panorâmico nesse sentido do que desenvolver a trama sobre as rusgas entre Natal e Paulo (grande contribuição no elenco de Almir Guineto). Elas estão ali, mas quase enquanto debate ético sobre a receita proveniente do jogo do bicho. Esse é outro ponto que se ergue quase como um acessório. O protagonista é apresentado como em uma abordagem “antes e depois”, uma visão um pouco esquematizada que fez o homem que perdeu o braço no trabalho de maquinista dos trens Central do Brasil migrar de vendedor de uma barraquinha de peixe com angu para grande empresário-contraventor do ramo de jogos de azar não legalizados sem que suas vivências e as demandas da vida sirvam de argumentos dessa transformação.
Todavia, há muita beleza em “Natal da Portela“. Não apenas as inserções musicais, que contam com a multitalentosa Zezé Motta. Os mais interessados encontrarão uma reconstituição da Serrinha e entenderão a responsabilidade do personagem no desenvolvimento urbano da região de Madureira. Um homem que não se colocava acima da lei, ele se entendia enquanto lei de um território deixado à margem pelo Poder Público. Algumas formas de expressão se mantém até hoje, agora vinculadas a outras forças de poder das comunidades. A principal delas no filme é a determinação de fechamento do comércio como forma de expressão desse poder.
Ou seja, por mais generalista que ele seja na abordagem, o longa-metragem encontra suas camadas – seja em representações performáticas ou elementos que circundam as cenas – se tornando outro bom registro dessa História.
Ouça “Sonhos de Natal”, na voz de João Nogueira: