Essa crítica de “Ninguém Sabe dos Gatos Persas” é parte do material complementar do curso Cinema Iraniano Contemporâneo ministrado no Sesc Tijuca nos meses de maio e junho de 2023.
Sinopse: Recém-saídos da prisão, dois jovens músicos, um homem e uma mulher, decidem formar uma banda. Juntos, eles andam pelo submundo de Teerã à procura de outros instrumentistas. Proibidos pelas autoridades de tocarem no Irã, eles planejam fugir de sua existência clandestina e sonham em tocar na Europa. Porém, sem dinheiro e sem passaportes, nada será tão fácil.
Direção: Bahman Ghobadi
Título Original: Kasi az gorbehaye irani khabar nadareh | کسی از گربه های ایرانی خبر نداره
Gênero: Drama | Musical
Duração: 1h 46min
País: Irã
Escancara e Induz
Para aqueles que se aventuram por uma análise em perspectiva da filmografia de Bahman Ghobadi, a experiência com “Ninguém Sabe dos Gatos Persas” (2009) pode deixar como rastro sensações que vão da intriga à diversão. A primeira é bem comum no Cinema Iraniano Contemporâneo, forjado em narrativas lacunosas na tentativa de aproximar o espectador da obra, como pensava e se expressava Abbas Kiarostami em meados dos anos 1990. A segunda foge da regra de um audiovisual que, mesmo carregado de humanismo, na maioria das vezes não deixa de ser muito duro e até um pouco cruel.
O longa-metragem conta a história de Ashkan e Negar, dois jovens que se aventuram na cultura musical underground de Teerã após serem liberados da prisão. Ao mesmo tempo em que eles planejam e investem na fuga do país na tentativa de buscar o sucesso na Europa, tentam formar uma banda e obter autorização para realizar pelo menos um concerto em terras iranianas. O sonho da garota Negar é fazer com que seus pais assistam ao seu trabalho antes de partir para uma temporada recheada de incertezas.
Temos aqui um ponto de virada na carreira de Ghobadi. O cineasta curdo, nascido na cidade de Baneh e radicado na capital do conflituoso território desde sua adolescência, chegava em 2009 ao fim da primeira década de sua carreira como realizador carregado de prêmios e reconhecimento. Não apenas dos festivais europeus e da crítica especializada, mas dentro do próprio Irã o diretor encontrava força como um dos líderes do Cinema Curdo que ganhava espaço. Foi no Irã presidido pelo reformista Mohammad Khatami que Ghobadi lançou seu primeiro filme e fundou a Mij Film, produtora com objetivo de lançar filmes de diferentes etnias. Com a ideia de se apropriar dos meios para dar o protagonismo curdo em todas as esferas de produção, “Tempo de Cavalos Bêbados” (2000) chegou a ser eleito para representar o país no Oscar de 2001, meses antes dos ataques ao World Trade Center, fato inescapável quando observamos a receptividade às obras contemporâneas do Oriente Médio.
Quando ele lança “Exílio no Iraque” (2002) na mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes, em um período em que a neurose ocidental tomava conta dos aeroportos e a figura do líder da Al-Qaeda Osama Bin Laden ocupava os jornais diariamente, se inicia um processo de acolhimento a discursos e representações que escancaram regimes autoritários e genocídios em curso na região. Ghobadi, então, leva a projeção do cinema iraniano a outro nível ao mostrar um Curdistão ainda mais atroz do que aquela que vemos pelo olhar de Behzad, protagonista de “O Vento nos Levará” (1999) do já citado Kiarostami.
Só que, ao mesmo tempo em que escancara muitas mazelas, os filmes de Ghobadi também nos induz a pensar o quanto as referências ocidentais por ele trazidas refletem esse desejo de acolhimento enquanto forma de ratificar as críticas que ele se propõe a fazer em sua obra. Ou seja, uma busca por aceitação que na verdade reproduz a ideia de que algumas nações do Ocidente se colocam como peças qualificadas no tabuleiro político e cultural interncional.
Para chegarmos a “Ninguém Sabe dos Gatos Persas“, entretanto, é fundamental olhar para o sucesso anterior do cineasta, “Tartarugas Podem Voar” (2004). Com essa obra, mais uma vez Ghobadi conseguia a indicação a representante do Irã no Oscar, escolha que denota o posicionamento político reformista de um governo que tinha o compromisso de ser menos repressor em todas as esferas daquela sociedade e território. Nessa história que leva à superfície o ciclo que coloca crianças para desenterrar minas terrestres para retorná-las ao mercado alternativo (para que os Exército dos EUA volte a enterrar no mesmo local), já encontramos uma leitura não tão desvinculada do euro centrismo.
Na obra, Ghobadi parece querer indexar força política e posição de poder ao acesso à informação. O protagonista Satellite (Soran Ebrahim) é um garoto que toma a frente do vilarejo no Curdistão às vésperas do ataque das forças de George W. Bush ao Iraque. Nas primeiras cenas, Saddam Hussein é o personagem passivo de inúmeras críticas dos moradores daquele território. Com restrição de acesso à água, energia elétrica e TV, é o protagonista que aparece como líder. Seu conhecimento vai do tecnológico ao linguístico. Ele é quem traduz as notícias que aparecem em inglês para os mais velhos, tirando do escuro aquelas pessoas preocupadas com a guerra iminente. Discute com anciões e professores qual educação é fundamental para o período. Sendo assim, o realizador deixa claro não apenas que a infância foi negada àquelas crianças, como parece induzir que o acesso ao Ocidente é parte da solução dos problemas.
Após lançar a coprodução francesa “Antes da Lua Cheia” (2006), o projeto seguinte de Ghobadi seria justamente “Ninguém Sabe dos Gatos Persas“. Deixando de lado a tradição iraniana do protagonista infantil, ele escala como comandantes da narrativa o duo Take It Easy Hospital, formado por Negar Shaghaghi e Ashkan Koshanejad. Deixando para trás a exploração imagética do território do Curdistão, ele ambienta sua narrativa em Teerã, capital iraniana. O ponto de virada da carreira não seria apenas estético. Acusando de defender os movimentos separatistas curdos, a produção do longa-metragem enfrentou graves problemas por parte da polícia e governo local, a ponto da dupla de músicos fugir para a Europa e do diretor se exilar de vez no Iraque ao término das filmagens. Curiosamente, consequências que ocorrem na obra mais urbana de sua carreira até então.
Pois é na cena urbana que Ghobadi mais uma vez escancara e induz. Nessa comédia indie que traz um leque de referências musicais do Ocidente, a revolta natural dos mais jovens é a mola propulsora da narrativa. Uma abordagem pouco (ou nada) usual no país que não elegeria o sucessor de Khatami e tomava caminho diverso ao dar a presidência a Mahmoud Ahmadinejad. A influência globalizada contemporânea surge desde os créditos, que ganham a tela também em inglês.
A primeira cena não deixa de homenagear as tradições do cinema iraniano. Ao nos apresentar Babak (Babak Mirzakhani), sentimos um tempero de metacinema ao brincar com o produtor que não entende curdo e que fala do “filme novo do Bahman” que usará não atores. O diretor ficcional ainda provoca dizendo “esse ano que ganho o Oscar”, como se esse caminho trilhado por Ghobadi pudesse encontrar guarida dentro do próprio país. Ao escancarar, ele sabe que toma um caminho sem volta para o exílio. Dentre as escolhas, verbaliza questões como a proibição das mulheres de cantar e a burocracia para obter autorização para uma apresentação musical. Coloca autoridades como inimigas das artes – e não lhes dará rosto, como veremos adiante. Vamos testemunhando os cabelos da jovem Negar ganhando a cena ao sair cada vez mais do véu, uma representação mais sutil e ao mesmo tempo mais transgressora do que as inúmeras cenas dos homens fazendo a barba antes de uma atitude de moral duvidosa nas obras das duas décadas anteriores.
Vale observar em “Ninguém Sabe dos Gatos Persas” a maneira como boa parte das ações acontecem nos interiores. Há uma justificativa de produção: os membros da equipe foram detidos duas vezes pela Polícia da Moralidade (finalmente extinta em 2022, após uma sequência de protestos pela morte da jovem curda Mahsa Amini). Ghobadi e aqueles ao seu lado passaram a ser constantemente monitorados, se safando da prisão oferecendo presentes aos agentes da lei. Sendo assim, não havia espaço para a exploração do espaço urbano dentro da narrativa. Porém, isso não significa que ele não esteja lá.
A montagem do filme é carregada de transições musicais, semelhantes a pequenas videoclipes que não deixam de avançar a trama. Em boa parte delas, o realizador confronta a ação dos músicos em seus estúdios com um olhar observador da câmera para a Teerã do final dos anos 2000. Traça uma etnografia que por vezes ilustra as questões verbalizadas pelos personagens. Ao tocar um blues, por exemplo, somos levados às imagens da madrugada da capital, com homens procurando nos lixos algo para comer. Praticam a mendicância alguns momentos depois do espectador ter a informação de que essa é uma conduta passível de detenção. Já em outra música, a banda aparece desfocada, garantido ou simulando o anonimato.
Quem não assistiu “Ninguém Sabe dos Gatos Persas” pode acreditar que estamos diante de mais uma sequência de cenas cruéis sobre a realidade do povo iraniano. A diferença é que Ghobadi carrega seu filme de frescor, um dinamismo que pode soar até como incompatível àqueles que se interessam pelo audiovisual do país. Vamos do indie rock ao nu metal, com direito a pôster dos Beatles nas paredes e a mesma camisa do Strokes que o personagem de Shia LaBeouf usa no primeiro “Transformers” (2007). Reproduz o mesmo culto à simbologia ocidentalista como se quisesse provocar os dois lados.
Até quando faz “diferente” o filme é carregado de intenção política. Pense que a única apresentação musical externa, depois de jam sessions e pop de estúdio, é uma canção carregada de tradicionalismo, com direito a dançarinos típicos. Possivelmente a única forma possível daqueles artistas se expressarem de forma livre.
Já na cena mais emblemática do filme, Babak aparece detido pela Polícia de Moralidade tendo que explicar o conteúdo de seus CDs gravados. Na sequência ele nega que consuma álcool e tenta “dobrar” o agente da lei da mesma maneira que a equipe de produção do longa-metragem o fez. Se pensarmos no processo criativo de Ghobadi (em “Tartarugas Podem Voar”, por exemplo, ele esboçava à noite as cenas que gravaria na manhã seguinte), podemos apostar que a ideia da arte imitar a vida se fez presente aqui, com uma sequência criada no calor dos acontecimentos reais.
Todavia, mais do que fazer isso é “como” é feito. O policial nunca é mostrado, o olhar objetivo do jovem artista que tenta salvar Babak é quem conduz as ações. Pela fresta da porta ele só consegue ver o colega de banda no outro lado da mesa. Em cima dela, uma pequena bandeira do Irã some e aparece, como se tremulasse ou fosse agitada pelo agente invisível. O diretor cria ali as bases para um discurso crítico ainda mais direto na parte final.
Babak se livra desse problema e parte em busca de um rapper persa. Ao encontrá-lo, define Teerã como “uma cidade onde se pode morrer com orgulho” e assistiremos duas canções que encerram as sequências musicais. A primeira consiste em um rap que denuncia a desigualdade social e a ganância, exaltando a existência de uma luta de classes. E a segunda talvez seja uma das mais ofensivas apresentações aos detentores do poder no Irã: o duo de protagonistas cantando em inglês.
Vale mencionar que existe uma alegação de plágio de Bahman Ghobadi por parte da diretora Torang Abedian. Segundo ela, o diretor sabia da produção de seu documentário “Not an Illusion” (2009) sobre a cena musical underground em Teerã. A cineasta também foi parte de um processo de abertura reformista, que seria abalada pela saída de Khatami. Formada em Cinema na Inglaterra, ela retorna ao Irã com esse projeto que acompanha as dificuldades de cantores (e, sobretudo, cantoras) se estabelecerem no cenário musical do país. O cinegrafista do filme, entretanto, intermediou um recado de que o cineasta curdo gostaria de encontrá-la, mas essa reunião não acontece.
Algumas semanas depois, “Ninguém Sabe dos Gatos Persas” estava pronto com uma proposta de ficção semidocumental na tradição de realidade encenada que o audiovisual do país faz tão bem. Quem assistiu ambos diz que a abordagem, a estética e o estilo da câmera transformam as obras em siamesas. Ou seja, o filme é um sucesso que passa por uma suspeita de roubo de ideias e um apagamento feminino ainda mais doído se pensarmos no contexto no qual ele ocorreu.
Rodado em apenas dezessete dias, o longa-metragem foi exibido no SXSW quando finalizado. Um tapete vermelho bem distante do Fajr Festival que consagrou Ghobadi como um dos grandes cineastas em atividade no próprio país quando do lançamento de “Tempo de Cavalos Bêbados” e “Tartarugas Pode Voar”. Ancorado nesse acolhimento ocidental, ele estabeleceria o exílio como alternativa, sendo o filme seguinte – “O Último Poema do Rinoceronte” (2012) – uma produção iraquiana. Até que ele se muda para a Turquia e realiza um documentário que nomeia o Curdistão como, de fato, ele é: “A Flag Without Country” (2015), abraçando a proposta de levar ao Ocidente com didatismo questões envolvendo o território do Oriente Médio.
A década seguinte da carreira de Ghobadi trouxe ainda mais respeito no Ocidente, que usa os discursos contra hegemônicos às nações do Oriente Médio como arma cultural no tabuleiro político. Ao mesmo tempo, o afastamento do Irã foi tão intenso que o tornou exilado. Membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, o cineasta curdo não tem se esquivado de posicionar-se contra o que acontece em seu país. Porém, observa que há algo além das boas intenções acolhedoras de seus pares nos Estados Unidos.
Em duas manifestações perante à Academia, ele cobrou um posicionamento a favor dos protestos contra a Polícia de Moralidade em 2022 e sugestionou a possibilidade de realizadores e realizadoras exilados submeterem suas obras ao prêmio de filme internacional, dada a inviabilidade disso ocorrer pela indicação como representante do próprio país. As duas foram pouco debatidas em Hollywood. Por sinal, se pensarmos que na cerimônia de 2023 foi oferecido um minuto de silêncio à Ucrânia e cogitada a possibilidade da participação remota de Volodymyr Zelensky à cerimônia do Oscar, podemos refletir acerca das prioridades do Ocidente como bloco culturalmente hegemônico.
Pensando no longa-metragem como ponto de virada na carreira de Bahman Ghobadi, permanece a dúvida: a busca por ocupação de certos espaços como o palco do Oscar e o tapete vermelho de grandes festivais europeus como Cannes, Berlim e Veneza não acaba por reproduzir o discurso de valorização de espaços que talvez não precisassem ser tão valorizados? O quanto da ideia que vinculava o cineasta a um Cinema Curdo pensado como ferramenta política se perdeu na maneira como ele escolheu seguir sua carreira após o rompimento com o sistema iraniano de produção? Claro que isso não diminui o peso de suas obras e a importância do que ela representa, principalmente em relação ao protagonismo curdo e de tomar para si o discurso. Dentre todas elas, “Ninguém Sabe dos Gatos Persas” pode ser uma ótima forma de começar a conhecê-las.
Veja o trailer: