Sinopse: Maud Crayon (Valérie Donzelli), arquiteta e mãe de duas crianças, conquista – graças a um mal-entendido – o grande concurso promovido pela prefeitura de Paris para reformar o pátio diante da catedral de Notre-Dame… Às voltas com essa nova responsabilidade, ela se vê em meio a uma tempestade ao ter de lidar ao mesmo tempo com um antigo amor da juventude que reaparece de repente e com o pai de seus filhos, a quem não chega a abandonar completamente.
Direção: Valérie Donzelli
Título Original: Notre Dame (2019)
Gênero: Comédia
Duração: 1h 30min
País: França | Bélgica
Quando Paris Alucina
“Notre Dame” chega ao circuito brasileiro em um período em que, curiosamente, vivemos um intenso debate sobre saúde mental a partir de um programa de televisão que nos convida a assistir participantes testando seus limites em um confinamento entendiante para eles (nunca para nós). O longa-metragem encontra uma abordagem em seu ato inaugural que nos traz um menu grandes questões da sociedade atual. Dirigido, roteirizado e estrelado por Valérie Donzelli, o filme conta a história de Maud Crayon, uma arquiteta de escritório que projeta despretensiosamente o restauro do pátio em frente à Catedral incendiada em 15 de abril de 2019.
Antes disso, porém, a Paris que se apresenta no prólogo é a do desemprego, dos desastres naturais (enchentes, furacões, granizos, estiagens) e de todos os tipos de doenças do corpo e da mente (altos índices de depressão e diabetes são alguns dos exemplos). Acontecimentos naturalizados pela voz impávida do apresentador do jornal que surge pelas ondas do rádio. Tudo é possível em uma realidade alucinante, em que os trabalhadores precisam se contorcer e espremer trabalho intelectual em uma sala com baias de vários colegas de empresa, cada um a seu tempo e todos enfrentando o som de uma britadeira que vem da rua, Escritório, por sinal, localizado abaixo do nível da calçada e que em prol da saúde mental inexistente e utópica, é cheia de janelas, totalmente vazado e insuportável.
Com isso, “Notre Dame” se ergue como uma obra que une o cosmopolitismo de uma comédia parisiense (ou novaiorquina) feita para as massas com o cronismo típico de um longa-metragem que quer ser comprado pelo público a partir da identificação de seu cotidiano. Funciona bem (apesar de retomar clichês do cinema europeu comercial), mesmo que todo esse panorama de sociedade não pareça gerar consequências imediatas à trama. Todavia, convencionar que todo o tipo de conflito e tragédia foi naturalizado, abre a possibilidade de tornar a alucinante narrativa factível. Isso porque o ato inaugural se encerra com o toque de realismo fantástico muitas vezes forçados pelo cinema francês popular. Aqui, contudo, Maud é pinçada na multidão com o envio sobrenatural da maquete de seu projeto. Este, por sua vez, voará pelos ares de Paris e será depositado, sem inscrição prévia, na sala onde a Prefeitura analisa ideias para a restauração da Catedral.
Por sinal, na insanidade de nossos tempos, que cria pequenos apocalipses a cada edição de nosso telejornal favorito, o incêndio da clássica igreja pareceu algo perdido em nossa rotina de colecionar desastres. O que Donzelli faz é desenvolver uma personagem que se encaixa muito bem nessa forma espetacularizda e midiática de se lidar com todas as questões contemporâneas. Uma convocação de ampla concorrência para o projeto se transforma em um debate estético e problematizante sobre os rumos que as obras levariam.
Por mais que sejamos movidos por essa jornada profissional de Maud, a cineasta opta por traçar o caminho mais óbvio das relações pessoais da protagonista. O grande exemplo é o triângulo amoroso entre Martial (seu ex-marido, interpretado por Thomas Scimeca) e Bacchus (jornalista, com quem vive um relacionamento casual, vivido por Pierre Deladonchamps). Isso tira um pouco do dinamismo imaginado na parte inicial do longa-metragem, apesar de não comprometer a diversão. Não estamos diante de uma comédia rasgada, tampouco um romance açucarado – a obra é mais plural do que essas manifestações. Contudo, o arco da mulher que se vê diante de um grande desafio – e até mesmo as consequências de escolhas profissionais – não é tão aproveitado como aparentava.
Uma vez consolidada a história, a produção usa menos a fantasia do que poderia – já que é dela que seu mote emerge. A clássica montagem de avanço temporal no fim do segundo ato, por exemplo, é muito bonita – feita de forma teatralizada. Informações preciosas também se perdem em cenas bem menos impactantes. Em uma delas é lembrado o manifesto contra a construção da Torre Eiffel no final do século XIX, assinado por grandes intelectuais e liderada por Guy de Maupassant . Talvez um engessamento narrativo imposto por amarras comerciais, fazendo esgotar (ou não consolidar) parte da inspiração da talentosa Valérie Donzelli – que, antes de enveredar para o Cinema – também cursou arquitetura na juventude.
Por fim, em uma das naturalizações mais interessantes e promissoras de “Notre Dame“, o hábito adquirido de darmos tapas na cara uns nos outros. Um exercício de projeção de comportamento, com base em uma realidade onde debates se perderam (e, assim como a saúde mental, vale mencionar aquele programa de televisão que consome boa parte dos nossos dias). É quase como resgatar o discurso de aceitação do absurdo – popularizado por um argelino radicado na França lá nos anos 1940 – mas em representações perdidas em uma narrativa que quer ser tradicional em um mundo que não mais as permitem.