Nunca Mais Serei a Mesma

Nunca Mais Serei a Mesma Documentário Filme Crítica Imagem

10º Olhar de Cinema | BannerSinopse: Filmadas no México, em Honduras, no Brasil e na Argentina, as histórias de quatro mulheres que tiveram suas vidas marcadas pelas violências de gênero se entrelaçam com cuidado e fluidez. Estabelecendo aproximações e alianças a partir da construção do espaço fílmico, o documentário se deixa permear pelas estratégias de sobrevivência que cada uma delas mobiliza em seu respectivo país. Combinando corpos, culturas, paisagens e línguas distintas, o filme traça elos poderosos para a composição de uma cartografia das lutas feministas na América Latina.
Direção: Alice Lanari
Título Original: Nunca Mais Serei a Mesma (2021)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 29min
País: Brasil | Argentina | Honduras | México

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Até Mudarmos

Acontecem algumas coisas no Brasil com certa constância que nos faz duvidar sobre o alcance das mensagens sobre respeito, tolerância e igualdade nos meandros da sociedade. A própria existência desses atos justificam (ainda mais) a produção de discursos como o panorama costurado por Alice Lanari e pela MPC Produções em “Nunca Mais Serei a Mesma“, exibido na mostra Outros Olhares do 10º Olhar de Cinema.

Vamos citar um exemplo recente para que essa divagação não se perca nos ventos alísios da América Latina. Há pouco mais de um mês, quando completou-se quinze anos de vigência da Lei Maria da Penha, um passo importante de ferramenta de prevenção e punição de casos de violência contra a mulher, um deputado catarinense recebeu em seu gabinete o agressor da farmacêutica e líder de um movimento inquestionavelmente fundamental no país. Fosse nossa comunidade iluminada pela consciência e com entendimento preciso acerca da diferença entre liberdade de expressão e discurso de ódio, um parlamentar como Jessé Lopes seria preso em flagrante com base na legislação vigente.

Porém, não foi isso que ocorreu. Não serei eu a abrir o tampão desse esgoto, mas aposto que ele ganhou mais seguidores em suas redes sociais (e talvez mais eleitores no ano que vem) com essa atitude. Na conversa que a diretora, ao lado da produtora Luciana Boal Marinho, teve com Camila Macedo no canal oficial do festival no YouTube (e que você assiste ao final da crítica), o primeiro ponto abordado foi o aumento dos casos de feminicídio, agressões e assédio no período da pandemia, praticado por seus pais, maridos, irmãos e filhos. Previamente movidas por essa realidade, elas buscaram vários recortes  que pudesse concentrar em quatro personagens algumas das consequências dessa realidade ainda no período pré-pandêmico.

Sendo assim, “Nunca Mais Serei a Mesma” acompanha a vida de quatro mulheres no ano de 2019 por Brasil, Argentina, México e Honduras. Alice vê na latinidade um forte poder de atratividade para suas realizações. Seu outro longa-metragem, “América Armada” (2018) foi bem sucedido no circuito de festivais ao redor do mundo e seu lançamento em 2021 permitiu uma conversa de Roberta Mathias com ela e Pedro Asberg no nosso canal. Agora, em uma obra que explora leituras sobre maternidade, discriminação sexual, racial e de gênero, ela dá um passo importante na consolidação como uma das grandes documentaristas da atualidade do continente.

Dentre as várias percepções da sessão, a brasileira Ana Paula Gonçalves tem uma das falas mais marcantes. Muito pela sua conscientização acerca dos atravessamentos que perpassam a rotina de uma mulher preta e periférica, que precisa materializar suas vivências em forma de conhecimento para o filho. Ele começa a transitar sem ela por aquele território e ela não deseja que a maturidade precoce não venha como reflexo de novas dores. É pelo olhar dela que a questão de identificação do problema ganha forma. Pela percepção do racismo – que ela admite que foi um processo de construção interna – o filme cria um arco sobre as outras percepções, como assédio e violência.

De lá, vai para a Argentina para representar a tão importante rede de auxílio e no México a solitária luta por justiça. Nessa mencionada consciência de Ana, a sociedade impõe alguns protocolos de sobrevivência bem anteriores a qualquer providência que a pandemia nos exigiu (e que negacionistas atacaram). É óbvio que muitos ainda entenderão os aconselhamentos com senso de urgência dessa mãe como algo exagerado, mas basta circular democraticamente e com olhar crítico pelos espaços para testemunhar racismo e misoginia a todo instante.

A brasileira também coloca a violência obstetrícia como outra questão, já levantada em outras produções documentais e que parece permanecer à margem dos debates que mais reverberam. Isso porque a parcela da população que ainda não desconstruiu, de todo, o discurso eugenista, ainda é considerável. O espectador também encontra no longa-metragem referências ao abandono parental, que também se colocou como ponto no Olhar de Cinema em “Rio Doce” e “Mirador“, outras produções brasileiras selecionadas.  Afinal, com uma curadoria que quer valorizar obras que repercutem a memória, a realidade do homem ausente tem quase o mesmo peso do homem agressor.

Por isso, a simbologia de um parlamentar receber um deles em seu gabinete como se fosse possível essa coexistência, tem efeitos que permanecem na sociedade por muitos anos. Refletindo várias tipos de trauma, “Nunca Mais Serei a Mesma” encontra o ritmo para traçar um panorama esclarecedor. Vai além da primeira camada de perfuração do problema. Na verdade, dos problemas, porque o ódio enquanto discurso é balanceado para destruir qualquer chance de empoderamento dos oprimidos.

Assista à conversa entre Camila Macedo, Alice Lanari e Luciana Boal Marinho sobre “Nunca Mais Serei a Mesma”:

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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