Sinopse: Em um bar em Cartagena, o tempo se espirala nas conversas de frequentadores/as, nos sons oriundos do rádio e nas imagens exibidas na tevê. Em seu segundo longa-metragem, o espanhol López Carrasco volta a explorar a história recente de seu país, tendo como ponto de partida o ano de 1992: enquanto se celebrava a Exposição de Sevilha e os Jogos Olímpicos em Barcelona, um levante de trabalhadores/as contra a reconversão industrial toma as ruas cartageneras. Entre a saturação do visível e os ruídos daquilo que escapa aos limites do quadro e da memória, “O Ano do Descobrimento” cava espaços para a exumação de traumas coletivos.
Direção: Luis López Carrasco
Título Original: El Año del Descubrimiento (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 3h 20min
País: Espanha | Suíça
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Exibido no Festival de Roterdã e vencedor da mostra competitiva do tradicional Cinemá du Reel, festival voltado aos documentários, “O Ano do Descobrimento” é uma obra de mergulho pelas opiniões polarizadas do povo espanhol. Conflitos ideológicos, geracionais e de leituras do passado recente que, fatalmente, encontrará em algum momento uma produção similar no audiovisual nacional – que já usa esses temas como mote. Além disso, evoca um dos grandes palcos das boas discussões sobre política: a saudosa mesa do bar – e quem cumpre o isolamento social está há quase um ano sem frequentar uma.
O diretor Luis López Carrasco traz um fato gerador: o ano de 1992. Assim como o Brasil da Copa do Mundo de 2014 e o Rio de Janeiro dos Jogos Olímpicos de 2016, o evento poliesportivo em Barcelona naquele ano trouxe a mistura de progresso maquiado com agravamento de crises. Se aqui a esperada cadeia corruptiva se consolidou, com o aditivo de diversas remoções criminosas de famílias em áreas valiosas para a construção de ginásios ou para passar o transporte do cavalo de algum atleta neozelandês de hipismo, outras questões se apresentam no caso espanhol.
É provável que as três horas e meia de “O Ano do Descobrimento” o faça um dos filmes menos vistos do 9º Olhar de Cinema. É o segundo mais longo, porém “Luz nos Trópicos” (de quatro horas e meia) é parte da competitiva, o que por si só é atraente. O filme de Carrasco, entretanto, é frontalmente oposto ao de Paula Gaitán. Enquanto o épico imagético da diretora se prolonga em sequências impressionistas, aqui há um conjunto de informações a partir de diálogos que fazem do longa-metragem bem mais objetivo. Mais do que um retorno ao ano de 1992, estamos diante de um mapeamento da sociedade atual – o que é bem mais interessante ao chegarmos às conclusões.
No aniversário de quinhentos anos da bem sucedida (para eles) missão de Cristóvão Colombo nas Américas, o povo espanhol entendia que, no quintal de casa, ainda era preciso se redescobrir. Enquanto a modernidade olímpica tomava conta de Barcelona, em Cartagena o caos urbana e a rota do tráfico parecia desmembrar a região de Múrcia da potência de Madrid e da Catalunha. Em um forte depoimento de uma professora, por exemplo, a socialização do uso de entorpecentes é o assunto. Porque, no frigir dos ovos, todo o país encontrou sua parcela de prejuízo com aquela empreitada segregacionista travestida de fórmula mágica. Com taxas de desemprego alarmantes entre os jovens e vários setores de base sucateados, a Espanha divide com o Brasil e a Bolívia no momento a terceira maior taxa de letalidade da pandemia do coronavírus (pouco mais de 700 por milhão de habitantes – lembrando sempre que falamos de uma doença que existe há menos de um ano).
Uma das bases do sucesso dos Jogos Olímpicos aparece creditada ao governo socialista em curso naquele 1992. É quando o cineasta leva para “O Ano do Descobrimento” o primeiro embate: ideológico. Monta sua obra para cruzarmos desde militantes comunistas emocionados até os viúvos e viúvas da ditadura franquista, que durou quase quatro décadas. A edição, por sinal, não se prende a divisões – traz os encontros de maneira paralela. Ao mesmo tempo que traz dinamismo (usa muito bem a divisão da tela em duas sem desgastar o artifício, por exemplo), pode prejudicar um pouco o espectador menos informado da historiografia do país, o que é caso do público brasileiro. Mesmo assim, é fácil se relacionar com a obra justamente por encontrarmos no escopo da nossa sociedade agentes similares aos ali representados.
É uma “clínica geral” de política espanhola, no final das contas. Conversas que vão desde o serviço militar voluntário daqueles que apoiavam o regime até o inexplicável fato de questionar a todos os cidadãos (e não apenas àqueles que residem na Catalunha) sobre a desindexação de uma parte do país. Aos poucos 1992 vai ficando para trás e as questões se tornam mais atuais. Dentre elas, a dificuldade em se renovar o discurso que crie uma consciência de classe em um cenário de sindicatos desmontados e profunda crise econômica. Não segue para o caminho da imigração (talvez com essa adição o recorde de Gaitán seria batido), mas percebe-se o tom discriminatório dos mais velhos ao tratar originários de outras nações de “essas pessoas”.
Nisso, uma das melhores explorações do longa-metragem é o do choque geracional. Até que o filme termina seu ciclo retornado ao estopim do ano olímpico, com o levante dos trabalhadores de Cartagena pela precarização das condições de trabalho. Com isso, a hora final transforma tudo o que passou até ali em preparação, em caracterização de um mosaico. Mesmo adentrando na zona regionalista, ainda conseguimos concluir que precisamos de certa forma de renovação de discursos. Quase todas as ferramentas da luta social, pelos mais diversos motivos, foram precarizadas ou esvaziadas em quase todo o planeta. Se tem algo que “O Ano do Descobrimento” nos deixa é que passou da hora desses assuntos virarem pauta na mesa do bar. Antes que seja tarde demais e tudo pareça conversa de bêbado.
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