Sinopse: Em “O Apartamento”, Emad e Rana são casados e encenam a montagem da peça teatral “A Morte de um Caixeiro Viajante”, de Arthur Miller. Um dia, eles são surpreendidos com o alerta para que eles e todos os moradores do prédio em que vivem deixem o local imediatamente. O problema é que, devido a uma obra próxima, todo o prédio corre o risco de desabamento. Diante deste problema, Emad e Rana passam a morar, provisoriamente, em um apartamento emprestado. É lá que Rana é surpreendida com a entrada de um estranho no banheiro, justamente quando está tomando banho. O susto faz com que ela se machuque seriamente e vá parar no hospital. Entretanto, é o trauma do ocorrido que afeta, cada vez mais, suas vidas.
Direção: Asghar Farhadi
Título Original: فروشنده (2016)
Gênero: Drama
Duração: 2h 4min
País: Irã | França
O que nos Faz Piores
O segundo Oscar do Irã veio com “O Apartamento“, mais uma vez pelo olhar do cineasta Asghar Farhadi. Após uma temporada na França que o levou a realizar “O Passado“, o retorno a seu país de origem possibilitou uma obra ainda mais potente do que “A Separação“, grande sucesso da carreira até então. A derrota no Festival de Cannes de 2016 para “Eu, Daniel Blake” (2016) (apesar dos prêmios de ator e roteiro) pode gerar uma divisão de atenção dos espectadores entre os dois longas-metragens, mas a forma como os conflitos e as dinâmicas sociais se desenrolam aqui parecem inigualáveis. Enquanto autor, esse é seu texto mais profundo e impactante – e ainda assim sem que o olhar da direção se debruce um centímetro sobre qualquer viés de sensacionalismo imagético.
Na crítica do filme anterior, estrelado por Bérénice Bejo, falamos que Farhadi nos mostra o pior do ser humano em sua faceta mais humanizada – e talvez isso se estenderá por toda a carreira do iraniano. O leque de personagens que ele nos apresenta não é complexo apenas em sua construção. Todos os seus atos, escolhas e – não podemos esquecer – omissões são fundamentais para que o espectador crie ao longo das duas horas das sessões de seus filmes uma conexão que transcende o intercâmbio cultural. Ultrapassa o maniqueísmo de bom e mau, até mesmo de positivo e negativo. Somos levamos em nossa condição humana em um exercício que mistura empatia e projeção da realidade. Assim como as grandes narrativas de todos os tempos, “O Apartamento” nos leva por vários momentos à pergunta: o que faríamos se estivéssemos na mesma situação.
Na história, Emad (Shahab Hosseini) e Rana (Taraneh Alidoosti) vivem uma situação emergencial: o prédio onde moram está prestes a cair, com profundas rachaduras. Eles precisam se mudar às pressas, enquanto ensaiam no teatro como protagonistas de uma montagem de “A Morte do Caixeiro Viajante“, peça de Arthur Miller do final dos anos 1940. A relação dessa dramaturgia, suas adaptações para o cinema e a visão ocidental sobre o Capitalismo são um capítulo a parte que não comporta esse texto. Todavia, é óbvio que sua escolha pelo diretor é carregada de simbolismo. Há ainda menção nos créditos iniciais a Gholam-Hossein Sa’edi, um dos grandes nomes da Literatura iraniana no século XX.
Um projeto que o impressionou de tal forma o realizador que ele interrompe a produção do que viria a ser tornar “Todas Já Sabem” (2018) para lançar esse antes. Não apenas repetiu o prêmio da Academia, como foi novamente a maior bilheteria da história do Irã. Dessa vez ele não viajou aos Estados Unidos pare receber ao Oscar, em oposição à política migratória praticada por Donald Trump, Presidente à época.
Além de ator, Emad é professor de Literatura em uma escola só de garotos. Sua rotina exige que ele mantenha contato (e na posição de poder) com um grupo de jovens – os quais não pode dividir nem ser afetado pelo seu drama pessoal. O Irã no qual nos colocamos aqui é bem menos conservador e dogmático do que de “A Separação”, ligeiramente mais cosmopolita, porém a religiosidade e a moral a ela adstrita também estão presentes com força. Por isso, o receio de se estabelecer na nova casa, com os pertences pessoais da antiga moradora, é o indício de uma crise que levará o protagonista à derrocada enquanto indivíduo. Não nos debruçaremos sobre o desenrolar dos fatos aqui porque, além de serem marcantes para quem já viu, é parte fundamental para quem ainda não assistiu.
Ainda na abordagem inaugural, os dois “trabalhadores da cultura” (como eles mesmo se definem) saem de uma primeira situação-limite, o risco de desabamento da antiga propriedade, para uma segunda – ainda mais grave. Uma noite, quando acreditava que era o marido tocando a campainha, Rana abre a porta sem se certificar de quem chamava e vai para o banho. Minutos depois, quando Emad chega em casa, a esposa está sendo socorrida pelos novos vizinhos com marcas de agressão, após um ataque não conseguiu identificar de quem foi. Assim como na outra obra, o público não verá materializada a cena que permitiria alcançarmos o que, no Direito, chamamos de verdade real.
Eles descobrem, então, que Babak (Babak Karimi), seu colega de peça, omitiu que a antiga inquilina era uma prostituta e que o crime ocorreu mediante um erro de conhecimento de quem o praticou. O que torna “O Apartamento” ainda mais complexo enquanto leitura é que no meio dos elementos já mencionados como as dinâmicas sociais, a moral e a religiosidade, há o desenvolvimento de um ciclo através da ideia de carma que torna a trama ainda mais pesada, mesmo que suas representações na tela não sejam tanto.
Os espectadores mais sensíveis não sairão imunes ao desenrolar dos fatos, que vão além dos eventos pós-traumáticos do ataque à Rana. Acho que desde o “Oldboy” (2003) original, uma narrativa não conseguia me envolver por essa mistura de surpresa e catarse e é notável que Farhadi não precisa traduzir isso em uma estética agressiva (ou, para quem ainda aceita o termo, visceral). Todas as dores daqueles dramas estão ali postos e é possível identificar de imediato.
Transitamos da ideia da impureza de objetos e do dinheiro encontrado, passando pela dificuldade de se trabalhar enquanto atriz após os acontecimentos que a deixam com medo de ficar sozinha na própria casa. De forma linear e sempre com a honra enquanto mote, cada novo fato gera outras possibilidades de leitura. O que começa como vergonha pela exposição do caso para as autoridades vira um busca por justiçamento e se abre uma nova ótica: até que ponto essa solução é capaz de nos confrontar? Isso, claro, mantendo o mistério sobre a autoria da violência e deixando espaço para nos fazer refletir acerca das motivações – um dos melhores exercícios que o cinema do iraniano nos permite.
O problema é que Emad demora a perceber que certos problemas da nossa vida, infelizmente, são insolucionáveis. Não dá para voltar no tempo e evitar o mal e responder da mesma maneira nos faz sermos pessoas piores. Tão ruins quanto aqueles que condenamos. “O Apartamento” nos lembra que estamos muito perto de deixarmos de ser vítimas para sermos os agressores – vivemos no limite, a poucos passos de nos tornarmos monstros. Porém, com histórias que afetam de maneira direta nossos afetos e sentimentos mais profundos, Asghar Farhadi nos escancara a humanidade perdida sem que possamos censurar peremptoriamente todas aquelas atitudes.
Veja o Trailer: