Sinopse: Décadas depois de conquistarem o direito a trabalhar nas frentes de emergência, treze mulheres narram suas histórias vividas na região do Pajeú pernambucano, nos anos 1980. Se a disponibilidade da escuta é que institui os espaços para a fala, no encontro entre diretora e personagens a força do filme ultrapassa os limites de uma forma mais tradicional, desassentando com rigor e sensibilidade imaginários sobre o semiárido, a seca, a fome e as identidades de mulheres sertanejas.
Direção: Uilma Queiroz
Título Original: O Bem Virá (2021)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 19min
País: Brasil
E Voltará
O presente determina como serão realizadas as leituras sobre o passado. Dito isso, “O Bem Virá” é um dos documentários brasileiros mais importantes dentre os lançados em 2021. Talvez por isso que, mesmo dentro de um ótica tradicionalista, ele tenha encontrado morada no 10º Olhar de Cinema, onde foi apresentado na mostra Olhares Brasil. Nas experimentações sobre a construção e reconstituição de memórias que se tornou o foco de boa parte das narrativas, contar a história de um grupo de mulheres que lutou pelo direito ao emprego no início do período de redemocratização – mesmo com uma linguagem bem mais palatável na comparação com outras obras do festival – ganha carga política ainda maior no Brasil de (sic) Jair Bolsonaro.
A diretora Uilma Queiroz nos leva à área do Pajeú, com foco nas cidades de Carnaíba e Afogados da Ingazeira. Lá, ela registrará o reencontro de um grupo que foi se articulando por força das circunstâncias. Em um época de profunda crise econômica, agravada ainda mais pela divisão injusta de recursos entre as regiões do país, a força de trabalho masculina migrava para o Sudeste à procura de emprego. As mulheres que ficavam conviviam com a fome e a miséria, almejavam fazer parte das cooperativas e programas de recolocação de desempregados.
A cineasta citou, ao final da longa e ótima conversa da equipe de “O Bem Virá” com Camila Macedo no canal oficial do Olhar de Cinema no YouTube (e que você assiste ao final da crítica) outra representante do audiovisual pernambucano que surge com uma proposta que reúne a pesquisa acadêmica com a produção de imagens. Curiosamente, revi “Mateus” (2019), documentário de Dea Ferraz sobre o personagem do folguedo Cavalo Marinho por esses dias e saí com essa sensação de que, finalmente, estamos tirando a construção sulista dos territórios do Nordeste e Norte do país. Claro que o fato gerador é a produção de discursos por realizadores locais, que aliam o talento do fazer artístico com um embasamento multidisciplinar.
Parece também que parte da crítica e dos analistas, insistindo na aplicação do juízo valorativo, não possuem a menor vontade de conectar essas dinâmicas entre saberes, de atualizar leituras à luz de um mundo dinâmico, de criações digitalizadas, de produções que equilibram o universalismo com projeções a um público-alvo com suas próprias demandas. Não fazem mais arte apenas enquanto indústria nem tampouco como uma atividade meramente competitiva de circuitos de festivais, exibições e licenciamentos. Entregam para a sociedade o resultado de busca, seja ela qual for – e a busca aqui é bem direta.
Sendo assim, “O Bem Virá” entende necessárias três intervenções em narrações da diretora. No início, no meio e no final, propositalmente contextualizantes. Em um momento em que a verdade é mitigada, que milhões de pessoas (e também eleitoras) brigam com os dados, os fatos, as imagens, talvez a simples experiência imersiva não seja o suficiente. Precisa dar nome aos bois para que não pregue apenas para convertidos. Como processo de desconstrução do olhar sulista sobre o semiárido, a primeira quebra se relaciona com a seca, que surge em ciclos. Todavia, sempre houve interesse coronelista em tornar essa crise algo permanente, bem como da mídia hegemônica de explorar essa representação.
Propostas de solução sempre foram discutidas, mas as memórias daquelas mulheres da comunidade trazem fome, extrema pobreza e desmaios por desnutrição. Além de casamentos ruins, baseados na violência, no assédio ou no desrespeito. Na mistura de distanciamento histórico e formação de consciência, elas formatam discursos prontos, que falam por si só, é verdade. Não há nenhum engessamento ou didatismo na narração crítica de Uilma, apenas um arremate com base acadêmica e aliada aos fatos. Pobre de quem ainda aplica o formalismo na análise, em uma cartela de bingo do audiovisual, como se a legitimidade de uma obra viesse pelo número de estrelas.
Junto à luta pelo alistamento da década de 1980, as políticas públicas de convivência com o semiárido, promovidas pela Era PT, formam um arco. Apresentado para entender essas duas fases do passado mas, principalmente, para provocar uma leitura sensível sobre o presente. Ler o processo pelo qual estamos passando, compreender porque terceiras vias de juízes de exceção do Sul, neoliberais engomadinhos do Sudeste ou candidato com um tempero de coronelismo do Nordeste não emplacam em nenhuma pesquisa. Por sinal, muitos que deram um passo atrás ignorando que a miséria na sua região sempre foi um projeto refletiram muito nos anos pós-golpe e é bem provável que em 2022 seja esse o assunto dos analistas políticos da parte baixa do Brasil.
Foram tantos retrocessos em tão pouco tempo que há momentos em que parece que estamos assistindo um vídeo institucional daquele passado em que o mínimo de respeito ao cidadão era buscado. As mudanças do período iniciado pelo governo de Lula não foram o suficiente para resolver os problemas. Principalmente o da perseguição e morte de lideranças políticas, outro espectro que “O Bem Virá” menciona com brevidade, mas de forma assertiva. Devemos lembrar que é por isso que a violência e sua naturalização não deixam de ser pauta.
O trabalho de Uilma Queiroz e equipe é notável: vai se deslocando no espaço e no tempo, ampliando a lupa de um grupo de mulheres para o contexto macropolítico e viajando da gênese da redemocratização ao novo risco de morte da democracia com fluidez tradicional que preza a informação. E fatos. E dados. E imagens.
Assista à conversa entre Camila Macedo e a equipe de “O Bem Virá”: