Sinopse: Seu Duca sonhava em ter um cinema, desde menino. No galpão de um armazém, em Castanhal, iniciou seu sonho e, contra todas as adversidades, criou um circuito com mais de trinta salas exibidoras no interior dos estados do Pará, Maranhão e Amapá.
Direção: Edivaldo Moura
Título Original: O Cinema de Seu Duca (2014)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 29min
País: Brasil
Militância Cultural Silenciosa
O longa-metragem “O Cinema de Seu Duca“, dirigido por Edivaldo Moura e em cartaz na Mostra Cinemas do Brasil, é daqueles documentários que rompem a barreira do espaço-tempo. Não apenas no diálogo com o espectador, visto que o filme de 2014 segue trazendo provocações atualizadas no final de 2020. A forma como se dá o redemoinho de histórias sobre o Cine Argus, (localizado em Castanhal, Estado do Pará) e seu dono (personagem-título da obra) não se apega a uma linearidade. Isso permite que o público transite não apenas pela história daquela cidade, mas também por alguns movimentos e ondas do Cinema, que acabam nos aproximando – mesmo distantes daquele território – por vinculações afetivas, daquelas que só a arte consegue capturar.
Seu Duca foi uma espécie de “exército de um homem só”. Funda em 1938 a sala de cinema já citada e alcança o status de distribuidor para boa parte da região Norte do Brasil, chegando mais perto da outra ponta da rede de produção audiovisual. Guarde essa informação porque o que há de mais propositivo no documentário será o tema final de nossa crítica. Contudo, devemos tratar da obra tal qual estabelecida. O cineasta se vale, nos minutos iniciais, de depoimentos dos familiares mais próximos do protagonista, falecido na década de 1980 em um acidente de carro. Os filhos Pedro, Fátima e Amílcar (esse último co-produtor do filme ao lado de Edivaldo em parceria com a TV Liberal, afiliada da Rede Globo) e a viúva Nila falam de Manoel Carneiro, o Duca, como pessoa.
Só que todo militante pela arte tem certa dificuldade em desmembrar a vida pessoal ao amor que se tornou trabalho. “O Cinema de Seu Duca“, então, vai adicionando ex-funcionários e até mesmo bancários e outros empresários locais que mostram que o tino comercial dele não foi o suficiente para endurecer o coração cinéfilo. Preocupado em prover uma programação com o objetivo de levar diversão para a cidade, Castanhal deve se orgulhar de ter testemunhado um agitador cultural tão valioso quanto ele.
Por outro lado, o cinema como negócio não deixava de ser estratégico nas pequenas e médias cidades brasileiras. O filme traz um pouco disso. Não apenas reunindo fotos e notícias de jornais que vinculam a sala do Cine Argus com o ideal de progresso da localidade. O prédio, ao lado da Prefeitura do município paraense, era responsável por outros eventos, tanto cerimônias importantes quanto espaço para as artes cênicas. A função social do cinema perdurou e, como já tratamos em entrevistas e outros textos da Mostra Cinemas do Brasil, foi aos poucos sendo substituída por outras manifestações da sociedade.
Seu Duca era daqueles que compreendia o ritualismo daquela experiência. Recebia os espectadores com música e marcou gerações ao transformar o Concerto de Varsóvia em aviso de que a sessão estava prestes a começar – ao invés da frieza de três campainhas. Castanhal se conectava com o Brasil do Sul nos inforjornais e os espetáculos que era o Canal 100, quando os grandes jogadores como Pelé e Garrincha ganhavam formas e dribles. A partir deste ponto “O Cinema de Seu Duca” parte para um mergulho para dentro da sala, justificando sua duração incomum para documentários desta natureza.
Faz isso recortando algumas grandes ondas do cinema enquanto cultura popular: os princípios da montagem que surgiram no primeiro cinema com os diversos filmes sobre a Paixão de Cristo; as sessões duplas dos anos 1940 e 1950, quase sempre com o faroeste como filme de fundo; o cinema erótico inaugurado com “O Império dos Sentidos” (1976) e que transformou a pornochanchada em uma versão desbundante e minimamente transgressora no período da ditadura civil-militar; a transposição do fenômeno televisivo de Os Trapalhões e o estouro de bilheteria ao redor do país; o kung-fu de Bruce Lee e as fitas de ação de Stallone; até chegar à grande ode a essa manifestação artística com “Cinema Paradiso” (1985).
Sem se preocupar em trazer uma linha perspectiva, todos os elementos nos aproximam do Cine Argus. Até que ele nos lembra um dos últimos fenômenos, o lançamento em 2005 de “Dois Filhos de Francisco” (que assisti em uma sala no interior de Minas Gerais após alguns dias frustrados de fila dobrando o quarteirão da cidade). Essa historiografia aleatória funciona muito bem e nos traz aquele tema inicial, que deixamos guardado – por ser o elemento mais propositivo do longa-metragem, mesmo passado quase dez anos de sua produção.
O protagonista, cansado dos altos custos de frete dos intocáveis rolos de filme que vinham de Recife, quase sempre do Grupo Severiano Ribeiro, transformou a crise inicial dos cinemas de rua em ampliação de seus negócios. Formou a sua própria rede pela região Norte e se tornou também distribuidor. Há muito aqui na Apostila de Cinema essa ideia é trazida por nós como uma possível oportunidade de trazer de volta o entretenimento popular para zonas periféricas e interioranas do Brasil. Serem os pequenos e médios produtores e distribuidores também, de certo modo, exibidores. Mesmo que por associação ou de forma cooperada.
Em 2020, mesmo tratando o passado de “O Cinema de Seu Duca” como algo distante, terminamos a sessão pensando o quanto faz falta a voz e o protagonismo da militância cultural silenciosa de grandes personagens como ele. Muitos permanecem promovendo e alimentando seus sonhos e cabe a nós encontrarmos e reuni-los.
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Belíssima análise desta obra de grande repercussão nacional. Em nome da família agradeço esta homenagem.
Nós que agradecemos pelo comentário e parabenizamos pelo filme! Muito obrigado!