Sinopse: “O Direito de Matar” se passa durante o julgamento da jovem Elsa Lundestein, acusada de praticar a eutanásia de seu rico amante. O júri deve decidir e analisar se ela o matou para acabar com seu sofrimento ou por interesse próprio.
Direção: André Cayatte
Título Original: Justice est Faite (1950)
Gênero: Drama | Mistério
Duração: 1h 46min
País: França
Quando Ela Falha
Na virada de 1950 para 1951, a produção francesa “O Direito de Matar” conseguiu um feito que não deverá nunca mais ser superado. Em um momento onde os encontros de cinema a partir de mostras e prêmios começava a se consolidar, ele conseguiu receber o Leão de Ouro no Festival de Veneza e, meses depois, ser um dos cinco laureados com o Urso de Ouro do Festival de Berlim. Isso porque houve, naquela edição, uma divisão por gêneros e a obra ganhou na categoria “crime ou aventura”. A saber, os outros que conseguiram essa honraria naquele ano foram: “O Último Endereço” (comédia); “O Vale do Castor” (documentário); “4 num Jeep” (drama); e “Cinderela” (musical) – a animação da Disney e não a iminente ameaça do Amazon Prime Video que estreia amanhã.
Rapidamente esses dois eventos, em conjunto com o Festival de Cannes, criaram uma trinca que faz com que os representantes das principais mostras competitivas não repitam as obras selecionadas. Ou você ganha o selo de um ou do outro. Isso porque, parte do que motiva a realização e o burburinho por trás desses espaços, é o ineditismo. O próprio crítico, pesquisador e curador Eduardo Valente, no início de 2021 quando a Berlinale ocorreu sem que ninguém do Brasil conseguisse ser recebido no país pela ausência de vacinação, falou em suas redes dessa sensação de que estamos ali, naquelas salas, acessando pela primeira vez uma criação artística com grandes chances de impactar a sociedade e durar no imaginário da cinefilia por muitos anos.
Talvez “O Direito de Matar” seja uma pérola esquecida, se pensarmos na temática do filme. O diretor André Cayatte usa a montagem ligeira e a profundidade de plano que, no início dos anos 1950, parecia sedimentada desde Jean Renoir a Orson Welles. Representante da escola francesa, não há na estética qualquer pioneirismo. Contudo, sua opção por não transformar a narrativa “apenas” em um drama de tribunal é o encontro de modernidade na trama sobre o julgamento de Elsa, vivida por Claude Nollier. No mais, coloca no centro do debate a eutanásia – ou morte assistida – enquanto elemento afetivo, médico e jurídico ao mesmo tempo.
O roteiro foi escrito pelo próprio Cayatte, advogado de formação que se tornou escritor, jornalista e roteirista – até dirigir sua primeira produção em 1942, totalizando onze realizações até então. No ano anterior, ele venceu o Grande Prêmio do Júri em Cannes pela antologia “Retour à la Vie” – e seria selecionado mais três vezes na década de 50. Ainda voltaria mais duas vezes a Veneza (prêmio em 1960 por “A Passagem do Reno“) e mais uma vez em Berlim (outros quatro troféus, inclusive Urso de Prata em 1973 por “Não Há Fumaça sem Fogo“). Aqui ele contou com os diálogos do belga Charles Spaak, com mais de cem trabalhos creditados em seus 45 anos de carreira, incluindo a parceria com o mesmo Renoir em “A Grande Ilusão” (1937).
A prova de que o longa-metragem foi um sucesso de público foi a longa repercussão, o que fez com que a versão romanceada (geralmente publicada alguns meses após a passagem da película pelas salas de cinema) ocorreu somente após quatro anos do lançamento. Uma leitura que mostra como o Direito demora a alcançar as dinâmicas sociais – e o faz até hoje. Um exemplo se encontra na oitiva de um médico no terço inaugural da obra. O profissional verbaliza diretamente sobre os problemas envolvendo “legislação e culpa cristã“. Interessante que o segundo termo, que funciona como mola propulsora de grande magnitude nas comunidades do Ocidente, foi abandonado em expressões artística populares, tornando as críticas sobre tais obras problematizadas aos olhos e ouvidos de muitos.
Aqui não há dúvida sobre a autoria e a materialidade. A protagonista confirma que foi ela que promoveu a morte do amado Maurice. A dúvida fica por conta da motivação. Elsa diz que foi a pedido dele, mas o cineasta opta pela linearidade narrativa e o espectador não terá a muleta dos flashbacks esclarecedores. A família do morto diz que, a despeito de uma carta de próprio punho confirmando a solicitação, ele se arrependeu dessa decisão. Se olharmos enquanto dilema jurídico, o caso é simples. O único elemento que surge para confrontar a tese de que a acusada matou por amor é o surgimento de um outro amor, Serge Cremer (Michel Auclair).
O longa-metragem, então, desenvolve subtramas a partir dos sete jurados que farão parte da sessão. Um equilíbrio que distancia o filme francês de clássicos norte-americanos da época como “Doze Homens e uma Sentença” (1957) e “O Vento Será tua Herança” (1960), realizados depois dele. Não veremos a mise-en-scène do tribunal prevalecer e nem tampouco as excessivas deliberações. Uma obra que vai um pouco mais fundo nas consequências individuais e coletivas a partir das percepções e projeções daquelas pessoas. Um júri não é apenas um tribunal feito para julgar “em nome da” sociedade. Assim como as Cortes Supremas, ele também age para dar uma “resposta a” sociedade.
Por conta de tal expediente, “O Direito de Matar” ataca em muitas frentes. De início, não apenas o arco introdutório de um grupo de personagens é relevante, mas o processo de sorteio dos jurados e como os agentes da lei em suas vestes e falas intimidadoras contribuem para tornar aquela função ainda mais difícil. Assim como no sistema brasileiro, é preciso apenas formar maioria (4 entre os 7) para construir uma sentença – e não unanimidade, como nos Estados Unidos. Entretanto, a forma como os populares são provocados, a partir de três perguntas (sobre autoria, premeditação e circunstância atenuante) se mostram insuficientes para as nuances do que parece ser uma eutanásia passional.
Ou seja, a conclusão final, de que a injustiça seria promovida independente do resultado, é uma sensação que ainda existe setenta anos após o lançamento do filme. Enquanto sistema que reproduz a dinâmica de privilégios e relações de poder da comunidade onde está inserida, o Direito (teoria) refletido enquanto aspecto pelo Judiciário (prática) segue, muitas das vezes, caminho contrário aos anseios e às necessidades de mudança. Não contempla as questões que são trazidas a ele.
Ao exigir uma decisão automatizada, o debate sobre o conflito entre piedade e egoísmo de Elsa perde sentido. Porém, Cayatte cria um ambiente curioso antes do ato final, que se concentrará nos momentos derradeiros do júri. O filme sai totalmente daquele espaço e se volta para a intimidade dos jurados. Ali, não apenas reflexões sobre a autonomia da mulher, em personagens que não querem mais vincular seus destinos ao casamento são apresentados. A namorada de um dos responsáveis pelo veredito materializa o impacto daquele ato na vida daquelas pessoas. “Absolva-a e começar a pensar igual a ela“, diz a moça.
Pensando na contemporaneidade, em que passamos o dia sendo julgados e julgadores, “O Direito de Matar” antecipa a ideia de que todos os nossos atos desabonam ou legitimam outros. Uma percepção externalizada pode ser vista como um salvo-conduto. Passamos a vida com medo de provarmos nosso próprio veneno – ou sermos nós mesmos carrascos de outros. Talvez a consequência imperceptível é que apendemos a dosar nossa empatia, com medo de nos tornarmos uma arma de injustiça.
Assista ao trabalho de restauração de “O Direito de Matar”, lançado em Blu-Ray na França em 2020: