Sinopse: Comédia, delírio rigoroso sobre a vida, paixão e obra do revolucionário escritor modernista Oswald de Andrade. Último longa-metragem de Joaquim Pedro, no qual ele recria o universo do movimento modernista de 1922, centrado nas atividades frenéticas do escritor e dos demais artistas e simpatizantes do período.
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Título Original: O Homem do Pau-Brasil (1981)
Gênero: Comédia
Duração: 1h 46min
País: Brasil
Leituras e Releituras
“O Homem do Pau-Brasil” é parte da nossa lista de revisitações de vencedores de grandes festivais nacionais e internacionais, chegando em um momento curioso, em que dois debates sobre produções audiovisuais tomaram conta de duas bolhas. Elas se entrecruzam, mas um parece ter mais aderência na sociedade do que o outro, como é natural em manifestações artísticas populares. Oportunidade, então, de trazer o último longa-metragem do cineasta Joaquim Pedro de Andrade – e que não foi tão bem recebido à época, apesar dos Candangos de melhor filme e atriz coadjuvante para Dina Sfat no Festival de Brasília de 1981.
As primeiras representações contemporâneas ao texto diz respeito ao 49º Festival de Cinema de Gramado, que se encerrou há alguns dias. Nele o júri oficial concedeu os troféus principais para “Carro Rei” (2021) e “Jesus Kid” (2021). Em nossas críticas é possível notar a receptividade atravessada de um modo de fazer cinema político que busca no alegórico e nas referências cruzadas – e apenas nele – as mensagens que deseja traduzir em imagens. Talvez esse desbunde, já um pouco desgastado para alguns (e nunca entendido por outros desde a gênese do Cinema Novo), tenha sido parte da baixa aceitação da obra há quarenta anos. Quem sabe uma geração que encontre as palavras de um septuagenário em 2061 ache graça das palavras dedicadas aos celebrados longas-metragens de Renata Pinheiro e Aly Muritiba?
Mas, há uma questão bem mais urgente que a produção nacional se depara no momento. Mais relevante pelo fato de ser exibido diariamente às seis da tarde em todos os lares que possuem um televisor. Enquanto pesquisadores e artistas militam para trazer o revisionismo crítico aos fatos históricos, a novela “Nos Tempos do Imperador” é acusada de reproduzir preconceito e ódio, sob duas frentes. Na mais tradicional, vincula a Família Real, governantes e pessoas em posição de poder à condição de herói. Na mais moderna e muito perigosa, tenta modernizar a abordagem destilando racismo reverso através dos personagens – deslegitimando a luta do povo negro brasileiro às vésperas do que se convencionou chamar de abolição.
A TV Globo diz que foi surpreendida pelo destino e que o programa foi pensado para ser exibido em 2019. Porém, sabemos que tais debates não são tão novos assim na sociedade, o que leva a crer que a única que mudou em dois anos foi a própria empresa. Quase que uma opção editorial, fica a impressão. Mais alinhada com o governo protofascista que iniciava ali seu mandato, ela foi pega de calças arreadas quando se tornou parte do celeiro comunista do país. Agora, precisa reverter a baixa audiência de um produto nobre, a ponto de avisar que irá relançar o folhetim com uma abordagem mais didática.
Ela poderia exibir e convidar o espectador de “Nos Tempos do Imperador” a assistir “O Homem do Pau-Brasil“. Ainda mais na versão restaurada pela Cinemateca Brasileira em parceria com a Trama. Dedicado a Glauber Rocha, que havia falecido poucas semanas antes da primeira exibição do filme em Brasília e baseado na vida de Oswald de Andrade, a criação de Joaquim é fruto das formas como a arte brasileira tentou sobreviver e se sobressair aos governos totalitários e destruidores durante o século XX. A partir de um mosaico desbundante, a obra reúne grandes nomes da dramaturgia nacional, de Grande Otelo e Paulo José (inesquecíveis na obra-prima do cineasta, “Macunaíma“, de 1969) à Regina Duarte, que atirou o pouco de dignidade saudosista da namoradinha do Brasil no lixo da História quando aceitou ser Secretária de Cultura de Jair Bolsonaro. Hoje soa como uma fina ironia moralista dentro da película.
Se não tão anárquica quanto “Sem Essa, Aranha” (1970) de Rogério Sganzerla ou outros clássicos do Cinema Novo e Marginal, aqui temos um exemplo do uso da História como ferramenta a favor da criatividade (e não enquanto limitadora ou sequer deturpada). A obra recria as conjecturas da Semana de Arte Moderna de 1922 (e que completa cem anos ano que vem: o que o destino nos aguarda?) em um Oswald subdividido em duas personalidades, com elementos de gênero masculino e feminino pelas faces de Flávio Galvão e Ítala Nandi. Como parte da persona, posicionamentos reais, como o ranço em relação ao poeta Martins Fontes, que ele diz querer enrabar.
Por sinal, a masculinidade e a virilidade a ela relacionada são usadas algumas vezes no filme, pelo viés do deboche. Assim como o círculo de elite o qual o(s) protagonista(s) faz parte, sempre se colocando como classe legitimadora de demandas. Joaquim Pedro e Oswald tinham dupla consciência: a do olhar crítico sobre classes e a de que não deixariam de ser parte da burguesia. O distanciamento histórico fez do segundo – na releitura de uma fase efervescente do primeiro – mais direta. Entre um voo sobre Paris ao lado de Santos Dumont à representação de conflitos que partem de atravessamentos e desmobilizações. Problemas de entendimento de pautas que acabam facilitando golpes e “revoluções” invertidas no Brasil.
Porque todos esses Andrades, na frente e por trás das câmeras de “O Homem do Pau-Brasil“, são um pouco de Brazil sem deixar de ser Brasil. No meio de jargões que marcaram os modernistas como “só a antropofagia nos une” e “tupy or not tupy“, extraídas do Manifesto Atropófago que o artista publica em 1928. Com direito à menção à Tarsila do Amaral e sua obra que precisamos viajar para ver, encarnada por uma Dina Sfat inspirada. O longa-metragem é daqueles que vão além no contexto de sua época. Realizado já sob a égide do governo de João Figueiredo, na reabertura esculhambada da ditadura violenta e ao mesmo tempo tosca – como segue sendo a estética golpista nacional – o cineasta se permite escancarar a frase “abaixo à ditadura” no ecrã.
Na verdade, o projeto é antigo e surge ainda na esteira do resultado final de “Macunaíma”. O realizador já imaginava a liberdade de exploração das imagens em uma montagem descontínua (mas, curiosamente, nunca desconexa – até para aqueles que fruem apenas como uma fanfarra). Um desapego à narrativa, de maneira irreverente e eficiente, com um pouco da emulação modernista de Oswald. O antinaturalismo deve chocar até hoje uma grande parte do público, que segue consumindo audiovisual da forma clássica e que ainda se socorre às telenovelas e comédias atravessadas para trazer questões envolvendo a sociedade.
No meio de temas clássicos, como a concentração das propriedades (do tempo das capitanias hereditárias), a escravidão nunca superada de uma sociedade racista e os ciclos de exportação que deixam o povo à mercê dos donos de terras, há também espaço para levantar bandeira a favor da queda do patriarcado. Este se dá pela quando Nandi devora Galvão, se tornando a face “fêmea” de Oswald predominante e líder do matriarcado atropófago, como definiu o próprio diretor quando apresentou a obra na 5ª Mostra SP de Cinema, ao lado do co-roteirista Alexandre Eulálio.
Joaquim faleceria aos 56 anos em 1988 e uma retrospectiva de sua filmografia seria apresentada na 30ª edição da Mostra SP, quando o filme completou 25 anos de lançamento. Com a menção ao matriarcado de Pindorama, que encerra o Manifesto e recorrendo também às alegorias mais simples, lá está a Rosa Lituânia no meio de “O Homem do Pau-Brasil” nos divertindo e fazendo questionar se a culpa pela leitura cansada do audiovisual brasileiro contemporâneo não é da crítica – morrendo de estafa por culpa de uma nação que repete e reproduz os mesmo erros em qualquer período de sua História em que você aponta o dedo.