O Homem que Engarrafava Nuvens

O Homem que Engarrafava Nuvens Documentário Filme Crítica Pôster

Sinopse: Documentário-musical sobre a vida e a obra do compositor, advogado, deputado federal e criador das leis de direito autoral, Humberto Teixeira, também conhecido como “O Doutor do Baião” por ser o autor de clássicos populares como Asa Branca.
Direção: Lírio Ferreira
Título Original: O Homem que Engarrafava Nuvens (2008)
Gênero: Documentário | Musical
Duração: 1h 47min
País: Brasil

O Homem que Engarrafava Nuvens Documentário Filme Crítica Imagem

Gatilhos de Civilidade

O segundo-longa metragem documental em sequência da filmografia de Lírio Ferreira, “O Homem que Engarrafa Nuvens” leva o cineasta recifense para outro território. Sai o Rio de Janeiro de “Cartola – Música para os Olhos“, entra o Ceará de Humberto Teixeira, compositor, ao lado de Luiz Gonzaga, de grande parte das canções que fizeram do baião um dos gêneros musicais mais populares do século XX. Assim como o fez no samba, em produção que contou com preciosas imagens de arquivo, o diretor e roteirista não perde o foco nos encontros e afetos envolvendo a arte.

Aqui a resistência cultural começa com um dos grandes símbolos de um povo. O juazeiro, encontrado por Padre Cícero, imortalizado por Rachel de Queiroz, deu nome de cidade perto de Crato e parte da identidade de um povo. Será como ele que o filme se desenvolverá, ao som do repente e nas danças do reisado. Sendo assim, novamente temos um longa-metragem que consegue ser panorâmico sem ser superficial. Responsabilidade de quem soube trazer um personagem que, além de uma rica história, é capaz de dialogar com as vários construções de Brasil que atravessaram as últimas décadas.

Isso mantém a coerência de uma autoria de Lírio que – mesmo na ficcionalidade – traz a busca por origens como mote principal de suas obras. Aqui, entretanto, há um duplo protagonismo. Por trás da trajetória, representado com um pouco menos de apego à cronologia, do Doutor do Baião há Denise Dumont, sua filha e produtora do documentário. Sem transformar o filme em um julgamento, aos poucos somos envolvidos em uma pesquisa que objetiva o contraponto, algo de difícil articulação em uma linguagem que precisa de forte carga interpretativa.

Isso não faz de “O Homem que Engarrafava Nuvens” um tribunal, mas tem poder para fazê-lo mais do que uma cerimônia festiva. Assim como obras contemporâneas como “Todas as Melodias” (2019), Lírio recria algumas canções da carreira de Humberto no palco do Teatro Rival, no Rio de Janeiro. Desde o início daquela década, a Petrobrás era patrocinadora de um dos espaços mais tradicionais da cultura carioca – e o deixou de ser no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, como consequência do abandono do fomento à cultura por parte da empresa. O longa-metragem é um pouco sobre essas articulações da classe artística, que viu no Doutor do Baião, advogado por formação, se tornar deputado federal e criar uma das primeiras legislações voltadas à cultura como forma de expressão da sociedade.

A Lei Humberto Teixeira, de 1956, era voltada a realização de caravanas para a divulgação da música popular brasileira no exterior. Em um contexto de política da boa vizinhança, que mencionamos na crítica sobre Cartola e que trocou Zé Carioca aqui por Carmen Miranda lá, não deixava de ser uma expansão imperialista dos Estados Unidos. Com isso, a promoção dos nossos talentos fora do país ajudava na preservação da própria identidade – e vai um pouco ao encontro da maneira como os grandes nomes do samba não conseguiram prosperar a partir de suas criações da obra anterior do cineasta.

Veja o Trailer:

O Homem que Engarrafa Nuvens” ainda conta com a fotografia de Walter Carvalho e uma reunião de gerações que traz desde o clássico absoluto “Asa Branca” na voz de Maria Bethânia até uma apresentação cheia de energia de Cordel do Fogo Encantado na interessante “Mangaratiba”, sobre a cidade litorânea do Estado do Rio de Janeiro. O compositor chegou ao Sudeste na década de 1940, com o objetivo de cursar Medicina – acabou no Direito. Um momento imediatamente posterior ao Estado Novo retratado por Ferreira em “Baile Perfumado” e chegando ao que tratamos como alma se esvaindo do fim dos anos 1950 na ex-capital federal.

Quando o baião encontra espaço para a popularização, Humberto o leva a um caminho de urbanização e nacionalização do ritmo. O documentário, então, se vê compelindo a traçar um arco didático sobre a cultura musical nordestina daquela primeira metade do século XX e como todo aquele caldeirão se afunilou na identidade visual criada por Luiz Gonzaga, que parece formar com Teixeira um ímã com suas visões diametralmente opostas. Um equilíbrio que fez bem, deu certo – e que a obra documental, enquanto produto de seu tempo, consolida um tempo em que a Cultura como política de Estado foi capaz de gerar frutos como este.

Ao intitularmos a critica de gatilhos de civilidade é que parecemos cada vez mais longe do Ministério da Cultura de Gilberto Gil do que da visão exportadora (e embrionária) da Lei Humberto Teixeira. Como pudemos regredir tanto no setor em tão pouco tempo? Como chegamos, enquanto sociedade, em um limbo de desrespeito e falta de empatia com uma indústria tão fundamental e economicamente sustentável? Os encontros de “O Homem que Engarrafava Nuvens”, como o de Sivuca com Gal Costa, parecem de um passado remoto. Não somente de uma era pré-pandemia, de “união social”. Mas da arte enquanto um meio necessário.

No meio daquele leque de referências, que provou que o baião está na Tropicália, em Raul Seixas (com uma versão muito particular e igualmente inesquecível de “Asa Branca” – subvertendo a lógica imperialista) e na new wave de David Byrne (marcado pela geração MTV após a bronca de Caetano Veloso durante o VMB de 2004), há outro tipo de legado: o de afetos encontrados, da maneira como Lírio Ferreira gosta que suas obras, como “O Homem que Engarrafava Nuvens” sejam percebidas.

Por essa viagem através da história do Brasil, da música como condutora das transformações do país, há Denise Dumont. Em depoimento emocionado, fala do último dia de vida do pai. Com sua mãe, tenta materializar os resultados que buscava quando imaginou produzir um filme sobre ele. A meia hora final traz um pouco dos contrapontos que ela cansou de fugir e decidiu encarar. Com muita coragem e generosidade, diante de um público que tem nas criações de Humberto Teixeira parte da própria história.

Assista “Asa Branca”, na versão de Raul Seixas:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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