Sinopse: No momento em que uma pandemia massacra as populações indígenas do Brasil, sob o beneplácito de um governo saudoso da ditadura, parece urgente ouvir a voz do médico sanitarista Noel Nutels, que ressurge aqui em seu único registro remanescente, falando ao Congresso em pleno regime militar. Em cotejo com um material audiovisual impressionante, capturado por ele em suas missões aos territórios indígenas, essa voz não esconde a agressividade inata a seu lugar de fala. Nutels não é, aqui, o herói de um cordel laudatório: é um fantasma consciente das suas faltas que interpela o silêncio cúmplice dos que se calam.
Direção: Tiago Carvalho
Título Original: O Índio Cor de Rosa contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 11min
País: Brasil
O Homem que Não se Iludia
Exibido em sessão especial, no corte de menos de uma hora em dezembro do ano passado na Cinemateca do MAM do Rio de Janeiro, “O Índio Cor de Rosa contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels” chega ao espectador na mostra Outros Olhares do 9º Olhar de Cinema. O nome do recorte não poderia ser melhor para definir o longa-metragem. O diretor Tiago Carvalho resgata imagens e voz do médico sanitarista ucraniano Noel Nutels – e traça uma sinopse que já deixa claro seu objetivo, fazendo uma comparação muito pertinente com o nosso tempo. Na composição do filme, algumas trocas eram possíveis – e todas devidamente conquistadas.
A primeira, que tratamos muito aqui na Apostila de Cinema, é a aplicação do olhar estrangeiro. Assim como Aurélio Michiles se preocupa em definir o pesquisador irlandês Roger Casement como agente externo a favor dos povos originários oprimidos no belo documentário “Segredos de Putumayo” (2020), aqui não há dúvidas da humanidade inerente ao protagonista. Fundamental no controle de doenças potencialmente letais aos indígenas, como a tuberculose, seu ofício lhe permitiu uma integração com as comunidades que missionários de temporada jamais conseguiriam atingir.
Só que, além disso, Nutels gostava de produzir imagens e o fez em larga escala entre os anos de 1948 e 1963. São elas que compõem “O Índio Cor de Rosa” em quase toda a sua extensão (se não deixamos passar informação na maratona de seis filmes por dia, há apenas uma filmagem mais antigas do Major Thomaz Reis de 1932). Contando em alguns momentos com a direção fotográfica de José Medeiros, a qualidade do conteúdo é inestimável. Todavia, de nada valeria se Tiago Carvalho não configurasse aqueles arquivos. Sendo assim, no único registro de fala do europeu, ele monta o longa-metragem com o depoimentos de Noel à chamada CPI do Índio, ano de 1968.
É neste ponto que reside o grande interesse da obra. O cineasta consegue traçar um diálogo entre o mesmo homem, em fases distintas da vida e da carreira. O que o médico fez na prática, visitando rotineiramente os grupos indígenas e testemunhando o genocídio e o etnocídio daqueles povos, ele documenta em forma de discurso. Por vezes parece que ele se tornou um narrador, munido daquelas imagens no exato momento da fala, de tão equalizada que a edição do filme se apresenta.
Em outros momentos, Carvalho renova a experiência de conteúdos audiovisuais de décadas passadas quase como uma homenagem aos primórdios do cinema. Captações em preto e branco, com as limitações tecnológicas de produções caseiras da década de 50, surgem com uma trilha incidental de forte presença de pianos, quase como que impondo um ritmo ao que está sendo visto. Já no conteúdo, “O Índio Cor de Rosa” escalona de forma certeira as frentes trazidas por Nutels. Inicia com o arrependimento dele de fazer parte da criação do “Serviço de Proteção ao Índio”, até a revelação de um diálogo em que um deles fala do sentimento de desamparo e do desejo de abandonar a “ilusão de ser índio”.
Vai ainda em cima das riqueza que matam, com a exploração da força de trabalho e de uma consequência direta da opressão territorial, já em curso na época, mas agora com muito mais alcance: a desnutrição. Mais do que isso, se destaca a consciência do ucraniano sobre os temas que escapavam dos debates da época. O etnocídio clássico das missões catequizadoras fizeram parte do seu conjunto de gravações, mas ele já enxergava a tendência de uma iminente ocupação da região amazônica. Clamava que isso fosse realizada com respeito. Falhou miseravelmente. O ano que ele deu esse depoimento, repetimos, era 1968. Não precisa dizer mais nada.
“O Índio Cor de Rosa” corria duplo risco de exotização: na forma como o próprio Noel Nutels construiu as imagens originais e na maneira como Tiago Carvalho as reconfigurasse. O resultado está longe disso. Uma obra que transita da colonização à especulação imobiliária. É como se o médico olhasse presente, passado e futuro do Brasil em um intervalo de vinte anos. Com a câmera na mão e, na comparação com aqueles que deveriam cuidar da nação, muito mais consciência social na cabeça.
Clique aqui e visite a página oficial do Olhar de Cinema.
Clique aqui e visite nossa categoria do Festival Olhar de Cinema, com todos os textos.