O Livro dos Prazeres

O Livro dos Prazeres Marcela Lordy Filme Crítica Mostra SP Pôster

Logo Mostra SP 2020 Sinopse: O filme traz o romance Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, de Clarice Lispector, para os dias de hoje. Na trama, Lóri é uma mulher solitária e melancólica que divide o tempo entre suas tarefas como professora de Ensino Fundamental e seus relacionamentos amorosos, que são sempre rápidos e superficiais. Em um acaso, ela conhece o argentino Ulisses, um renomado professor de filosofia, egocêntrico e provocador. Mesmo que Ulisses não entenda nada sobre mulheres, é com ele que Lóri aprenderá a amar e a enfrentar sua própria solidão.
Direção: Marcela Lordy
Título Original: O Livro dos Prazeres  (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 39min
País: Brasil | Argentina

O Livro dos Prazeres Marcela Lordy Filme Crítica Mostra SP Imagem

,Verter Clarice:

Da janela de seu apartamento, Lori (Simone Spoladore) deve conseguir olhar a estátua de Clarice Lispector, no calçadão da praia. Parecendo ter a extensão das areias de Copacabana em seu lado direito, gosto de imaginar que é no Leme que ela vive. Da possibilidade de fazer da protagonista de “O Livros dos Prazeres” uma visita em potencial de uma das escritoras mais celebradas do século XX, a diretora Marcela Lordy entrega uma obra que, ao mesmo tempo adapta, atualiza e subverte. Desapego de lógica, tal qual a autora se valeu em algumas das páginas que compõe um livro do qual não gostava, apertado entre dois êxitos editorias de sua carreira (“A Paixão Segundo G.H.” e “Água Viva).

Há uma cisão na análise fílmica atual que beira a preconcepção de filmes como esse. Como se a narrativa elitista branca precisasse ser expurgada do convívio e da pluralidade artística brasileira. É provável que muitos dos desafetos do longa-metragem apresentado na Competição Novos Diretores da Mostra Brasil na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo tenha a decolonização como objetivo. Por sinal, os mesmos que atacarão por outros motivos “Casa de Antiguidades“. O julgamento de arte sob o viés anulatório pode até ter seu valor, cumprir uma função de chamamento. Todavia, venda os olhos daqueles que poderiam enaltecer uma produção como a de Lordy.

O Livro dos Prazeres” tem uma condução que alcança o que parecia impossível: materializar a construção de história de Clarice, quase sempre dependente do que se passa na cabeça de suas protagonistas. Faz isso sem cansativas inserções de narrações. É estilizante, sim, mas sem virtuosismo barato – ou sem objetivo. Não há no longa-metragem potencialidades de sequências que nos arrebatam – mas também não há abandono de unidade em favor de um take precioso (porém, inútil). Tem a mesma imersão na personalidade de Lori que o leitor atingiria se lesse o livro (comparação que, é sempre bom lembrar, não deve alterar em nada o julgamento sobre o filme, arte com vida própria).

Usa como o expediente a atualização da história. Spoladore vive uma professora com anseios parecidos, mas bem menos submissa, com a independência, a liberdade e a voz ativa que a construção social da época talvez não permitisse a Lispector proporcionar. Quem sabe, entretanto, ela hoje fosse superada por não conseguir corresponder aos anseios de seu público de dentro daquele apartamento no Leme. Nunca saberemos porque é um exercício imaginativo que não leva a nada. Já o filme de Lordy, esse sim, atinge seu objetivo de reinventar Lóri – sem deixar escapar o verniz canônico de sua criadora.

Sendo assim, a personagem não se dobra mais às convenções sociais que a fazia estar sempre maquiada. Rompe com a moral do sexo, sem que o tabu ritualístico do coito ampliasse este evento na trajetória de sua vida. “O Livro dos Prazeres” não limita sua personagem ao que Ulisses (Javier Drolas) tem a lhe “fornecer”, a lhe “ensinar”. As incertezas que pairam sobre a mente daquela mulher têm origem e somente por ela deverão ser exploradas. A cineasta nos apresenta aquele homem como agente externo – mas, o principal: apenas mais um.

Morando naquele apartamento na zona sul do Rio de Janeiro, forçada a conviver em um padrão de vida que seus ganhos não conseguem sustentar, Lóri compõe uma elite carioca falida. Uma geração de filhos de Clarice que aplica um olhar crítico ao que se entendia como sociedade, arte e política. Não à toa, parte da atualização da narrativa passa pela polarização familiar. É claro que o pai da personagem contribuiria com a eleição do atual Presidente. Marcela Lordy não descaracteriza essa elite, que ainda supervaloriza a propriedade privada e despeja inveja sobre aquela mulher que convive com as agruras de viver em uma casa que parece se desfazer.

Não se esquiva, entretanto, da simbologia desta elite, aquela que, independente da crise, tomará seu café em um bistrô. Em uma sequência, é ali que ela conversa com o irmão Davi (Felipe Rocha). Momento em que um suposto namorado sofre um processo inquisitorial para travestir o real objeto da cena: a cobrança daquela mulher. Lutar pela liberdade soa errado, ela precisa ser mãe, precisa se render à visão conservadora ultrapassada dos seus iguais – ou ter boas desculpas para não o fazer, baseada na régua moral dos sábios homens que a circundam.

O melhor, então, de “O Livro dos Prazeres” é ver como a diretora priorizou a extração deste prazer de sua protagonista. Mais do que torná-la comandante de sua própria vida, Simone Spoladore compõe sua Lóri como uma heroína silenciosa dos tempos atuais. Mais um trabalho excepcional da atriz em 2020 (ela lançou no Festival de Gramado, “Aos Pedaços“, dirigido por Ruy Guerra – uma personagem muito diferente, por sinal). Se Marcélia Cartaxo em “A Hora da Estrela” (1985) foi celebrada pela fidelidade de sua Macabéa, no centenário de Clarice Lispector temos mais uma inesquecível transposição de uma de suas criações, feita por outros caminhos.

A (im)posição de Ulisses já não lhe serve, as paredes de azulejos da Copacabana do final da década de 1960 já tem marcas do tempo. Estamos em uma realidade cujo “drama de apartamento” da escritora não conseguiria comportar. Mas, se ela termina seu livro com dois pontos, abre espaço para não esgotar as formas de leitura de Lóri, por que cobrar beatificações dogmáticas de uma mulher que era fruto de seu tempo? Para o bem e para o mal – sendo esses conceitos puramente subjetivos. “O Livro dos Prazeres” nos soa tão revigorante e libertador quanto um solitário banho de mar. Respeitosamente, Lordy não extrapola tanto outros ambientes, mas ressignifica aquele espaço, dando a Lóri o gozo de uma vida que ela conduz por entre os dedos sempre que for preciso.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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