Sinopse: “O Passado” mostra a ruína da relação entre um marido iraniano e sua esposa francesa, vivendo na Europa. Após muitas disputas, ele abandona a família e os dois filhos para retornar ao seu país de origem. Quando a esposa pede o divórcio oficial, ele descobre que o pedido é motivado pelo fato de ela ter conhecido outro homem. Assim, sem demoras, ele retorna ao lar para confrontar a esposa e o novo pretendente dela.
Direção: Asghar Farhadi
Título Original: Le Passé (2013)
Gênero: Drama | Mistério
Duração: 2h 10min
País: França | Itália | Bélgica | Irã
Estancando a Sangria
Depois do sucesso inquestionável de “A Separação” (2011), que consolidou o cinema do iraniano Asghar Farhadi como um dos mais pulsantes do audiovisual contemporâneo, ficou mais difícil que ele não emplacasse um projeto em terras europeias ou estadunidenses. Na França, ele realiza em 2013 “O Passado” e por lá mesmo ficou para receber um prêmio especial do Júri Ecumênico no Festival de Cannes. A Palma de Ouro de melhor filme não veio, mas a atriz Bérénice Bejo (indicado ao Oscar no ano anterior por “O Artista“) seria laureada. Um trabalho que o fez morar por dois anos no país, com a intenção de adequar o roteiro aos hábitos culturais e comportamentos daquela sociedade. Em coprodução, escolhido o representante do Irã no Oscar, mas não chegou a ser indicado.
O cineasta que começa a ampliar os tentáculos para ganhar o mundo de vez retoma seus dramas familiares precisos, em que o mistério é usado como um dos elementos de envolvimento, de conexão, para que os temas profundos e as representações cruas da natureza humana pareçam ainda mais marcantes. Impressiona como algumas escolhas na condução da narrativa e no texto de Farhadi são tão sutis quanto eficientes. Veja, por exemplo, uma das primeiras cenas do longa-metragem. Assim que Ahmad (Ali Mosaffa) chega à França para consolidar seu divórcio com Marie (Bejo), eles tentam buscar a filha na escola e não conseguem. Quando a mulher, que dirige do aeroporto até ali, volta ao carro, o homem que assume o volante e a condução da viagem.
Além do aspecto cultural que não tira do protagonista o ranço do patriarcado, mais adiante saberemos que essa relação de poder (ou expectativa de consolidação de poder) é usada pela própria Marie para um de seus intentos. Sua urgência para atrair Ahmad para aquele espaço, à primeira vista, é que agora ela mora com Samir (Tahar Rahim), pai de Fouad (Elyes Aguis) e eles desejam se casar de novo. Por sinal, o menino rouba as sequências na parte introdutória de “O Passado” para si, em uma revolta ininteligível para o personagem de Mosaffa.
O espectador acompanhará o campo de visão de Ahmad e se limitará ao conhecimento dele enquanto agente externo. Fica nítida a frieza das relações, sua filha mais nova não o chama de pai e ele precisa lidar com Lucie (Pauline Burlet), a mais velha que passa pelo fim da adolescência revoltada com a sazonalidade dos relacionamentos da mãe. Há outro ponto curioso aqui. Afinal, inserida em um lugar bem mais libertário e cosmopolita do que o Irã, esse tipo de contraponto não faria sentido em uma sociedade em que a mulher possui mais autonomia. Entretanto, quando isso afeta os seus laços familiares e afetivos, é possível que uma guinada mais conservadora na leitura social ganhe forma.
Isso explica, em parte, as ondas geracionais que se sobrepõem, quase como se os filhos usassem como premissa fazer diferente dos pais. Isso, entretanto, não é tão materializado no filme, que ultrapassa a fase inicial de seu desenvolvimento – carregado de torta de climão – com novas informações sobre o passado dos envolvidos. Quando Marie percebe que Ahmed não usará a assinatura do divórcio como elemento de chantagem, chega a ele os desdobramentos da “outra esposa” de Samir. Por alguns instantes, parecia que o cineasta cairia no terreno fácil do imponderável, contrariando sua filmografia pregressa. Daria um ar mais sensacionalista à trama, que envolve uma pessoa em coma com espasmos que permitem acreditar que ela possa acordar a qualquer instante.
Todavia, aliado ao mistério, os diálogos nos levam pelo intrigante caminho do julgamento das motivações de uma mulher que não está consciente para esclarecer – ou se defender. O público, como sempre, precisa projetar intenções, ser parte do problema, nunca saindo incólume de uma sessão dos filmes do realizador. Eu, por exemplo, não poderia deixar de lembrar um ensinamento do meu pai e outro do meu avô. O primeiro sempre diz (por sinal, um expediente que parece se repetir nos conselhos dos mais velhos) “se voltarmos na origem do problema, descobriremos que a culpa é sempre nossa“. No que meu avô, sempre que confrontando com alguma questão e com alma mais jovial, respondia: “mas, desse passado eu não me lembro“.
O filme acaba repetindo a tática de Farhadi de apresentar o pior do ser humano em sua faceta mais humanizada. Faz isso mostrando como fatos e situações pretéritas podem mudar nossa perspectiva sobre o jogo, torna (ainda mais) nebulosa a ideia de que há inocentes e culpados em dinâmicas como a apresentada. Por mais que goste de conclusões aberta, desta vez ele encerra “O Passado” com um gancho incrível no close de um aperto de mãos.
Nos créditos refletiremos sobre origens dos nossos problemas, sobre nossa parcela de culpa e imaginamos qual seria a visão do outro sobre aquilo que parece consolidado em nossa mente. Um trabalho de regressão que soa infinito e pode dar um nó nele mesmo. Cabe a nós determinar o momento em que estancamos nossa sangria.
Veja o Trailer: