O Problema de Nascer

O Problema de Nascer Filme Crítica Mostra SP Pôster

Logo Mostra SP 2020Sinopse: Elli é uma androide e mora com um homem a quem chama de pai. Durante o dia, os dois nadam na piscina e à noite ele a coloca na cama. Ela compartilha suas memórias e qualquer outra coisa que o homem a programe para lembrar. Memórias que significam tudo para ele, mas que não dizem nada para ela. No entanto, durante uma noite, Elli sai rumo à floresta seguindo um eco que se desvanece. “O Problema de Nascer” é a história de uma máquina e os fantasmas que todos carregamos dentro de nós.
Direção: Sandra Wollner
Título Original: The Trouble with Being Born | Die Last geboren zu sein (2020)
Gênero: Ficção Científica | Drama
Duração: 1h 34min
País: Áustria | Alemanha

O Problema de Nascer Filme Crítica Mostra SP Imagem

O Filme da Programação

Exibido na seção Encontros do Festival de Berlim, onde ganhou o prêmio especial do Júri, “O Problema de Nascer” chega ao Brasil pela mostra competitiva de novos diretores da 44ª Mostra SP. A cineasta austríaca Sandra Wollner nos prova que o circuito arthouse também tem seus algoritmos – muito mais próximos da formatação popular de audiovisual pretensamente construído para obras de maior apelo serem vista sob um viés mais profundo. Aqueles que conhecemos bem e dominam as listas de “filmes complexos”, que nada mais são do que narrativas ligeiramente fora do esperado.

Aqui, por exemplo, Wollner se vale de uma inversão nas representações – que encontramos o sentido se lermos a sinopse oficial (e quem gosta de evitar revelações sobre a trama já deveria abandonar essas informações, já que ali se entrega um terço do longa-metragem). Elli (Lena Watson) é uma menina que, aparentemente, passa as férias na luxuosa casa de veraneio do pai. Apesar da estação acabar de começar, junto aos constantes sons de grilos e o excesso de folhas no chão, chama a atenção da garota, que será nossa narradora no percurso. Se pudéssemos filtrar a obra e tirar a “camada” (palavra cada vez mais abolida pela crítica) fantástica, poderíamos dizer que a diretora conta a história de Georg (Dominik Warta), um pai abusador de menores – e o faz na troca da representação clássica, revelando primeiro a intimidade torpe para, mais adiante, o mostrar como digno trabalhador – por isso a inversão.

Todavia, “O Problema de Nascer” não tem apenas essa forma de se expressar – claro, é um filme “complexo”. Transita por essa temática da violência doméstica e de como os abusos nas relações familiares são geralmente silenciosos muito bem. Só que a produção cria uma para si uma proposta de choque que não se sustentará logo depois. Por sinal, o abandono de parte do público das sessões na Berlinale sem dúvida estão diretamente relacionados pela forma como Sandra representa essa relação – na teoria – incestuosa. Alvo de críticas por supostamente normalizar o interesse sexual por crianças, vale sempre o registro de que a doença está na cabeça da pessoa que assiste e não na narrativa de uma obra de arte. Normalizar as consequências dos atos ou na forma de expor é, sim, merecedora de críticas – mas nada disso é identificado aqui.

As escolhas de direção vão relacionando os cheiros da infância com os odores do corpo do pai, provocando uma desconfiança inicial da figura masculina para, em sequência, consolidar essa postura nojenta – e abominável também naquela lógica. A diretora faz isso com um enquadramento televisivo em 4:3, ocupando os espaços dos planos no limite da presença dos personagens. Um aprofundamento na intimidade que, de tão real, pode criar essa ojeriza por parte do espectador.

Por sinal, uma difícil direção da atriz mirim chama a atenção. Estamos diante de uma abordagem que fala como agressões e traumas pode se formar no início da vida de maneira pouco ininteligível para uma criança. “Mas por que você não falou disso na época?” – porque há medo e, em certa medida, desconhecimento. Ao escalar uma menor de idade para o papel (e Wollner admite que pensou em colocar uma adulta interpretando Elli), ela tem uma responsabilidade nas mãos. Como seguiu o caminho da androginia, pode aplicar próteses e maquiagem que dificultam a identificação da atriz, além de dar um nome artístico que a afaste. Por fim, usa a nudez a partir de inserções na pós-produção.

Tanto estranhamento e ambientação pelo bizarro é uma proposta algoritmizada muito parecida com os comentários sobre “Cozinhar, F*der, Matar“, que também estará em cartaz na Mostra SP. Ao adicionar o realismo fantástico e o flerte com o distópico, “O Problema de Nascer” deixa claro que quer atacar em muitas frentes. Marcando com didatismo o fato de que a menina é um robô, o segundo terço do filme explorará esse afastamento sentimental de Elli – agora Elizabeth, uma criança desaparecida há dez anos. Sai a temática do abuso doméstico silencioso travestido de amor e entram as possibilidades que a desumanização traz. O cenário urbano faz os sons da cidade substituírem os grilos do campo.

Não há em nossa realidade ainda androides tão perfeitos quanto o do filme, capazes de absorverem memórias e se comportarem como uma filha ou neta que está distante ou se foi – bastando para isso apenas programá-la por voz. Porém, já tratamos as pessoas reais sob uma ótica desumanizadora, o que – vejam só – é uma outra inversão que a leitura do longa-metragem permite, mesmo que discretamente.

A questão é que Sandra encaminha sua criação para uma solução que, se não é fácil, revela-se óbvia. Se há máquinas com aspectos humanos e elas são tratadas de forma pouco empática, a insurgência é o caminho. Aqui a tríade de algoritmos arthouse de “O Problema de Nascer” se completa. Há uma extensão do fiapo de narrativa que se sustenta com a aplicação do verniz existencialista de produções que querem discutir a sociedade a partir de um agente externo, fantástico e tecnológico. Androides e viagens no espaço, formatações que cada vez mais o audiovisual aprecia sem moderação. Ignora a substância – não apenas da narrativa, mas também estética.

O grande incômodo do filme não é a representação problemática de uma criança sexualizada, ela está contextualizada de forma nítida. Todavia, Sandra Wollner abandona suas convenções, cria elementos na linguagem e na montagem que se revelam virtuosismo na parte final. Não à toa, ela faz questão de “explicar” que seu filme é a antítese de Pinóquio em entrevistas. Geralmente é assim. A narração de Elli toma conta de maneira a virar esta personagem a voz da cineasta na conclusão, chegando a verbalizar a mudança no design de som para avisar do retorno dos grilos. Só faltou uma quebra de quarta parede e a protagonista piscar o olho para o espectador e o checklist estaria completo.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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