Sinopse: Nas montanhas do leste da Anatólia, num isolado internato para meninos curdos, uma emergência médica após uma noite de castigos revela o avesso da estrutura rigorosa da instituição e sua rotina ameaçadora, colocando em xeque as hierarquias e as responsabilidades. Em “O Protetor do Irmão”, a trama da opressão infantil, retrato duro do processo de apagamento do Curdistão do Norte, favorece uma metamorfose fílmica em torno dos escorregões autoritários dos mandachuvas turcos.
Direção: Ferit Karahan
Título Original: Okul Tıraşı (2021)
Gênero: Drama
Duração: 1h 25min
País: Turquia | Romênia
O que Dá Causa
Chegando com força na mostra competitiva do 10º Olhar de Cinema, após vencer o prêmio da FIPRESCI da mostra Panorama do Festival de Berlim deste ano, o turco “O Protetor do Irmão” usa uma base autobiográfica do cineasta Ferit Karahan, em seu segundo longa-metragem, para traçar paralelos com a sociedade turca nos últimos anos e o período em que ele, ainda criança, estudava em um colégio interno nos anos 1990, em meio à tensão entre turcos e curdos no território montanhoso de Anatólia. O primeiro tratamento do roteiro é de 2009 e a crise política e social da última meia década no país o aproximou ainda mais do projeto desde então.
Talvez o primeiro estranhamento do espectador do Ocidente (e guarde essa nomenclatura específica e propositalmente enviesada), é esclarecida pelo próprio diretor na entrevista que ele concedeu no canal oficial do festival no YouTube. Ao contrário de boa parte das nações do mundo, há uma inversão social no espaço onde o filme acontece. A educação de rigidez militarizada, que busca a disciplina e usa o distanciamento da família e os vínculos externos como método, geralmente, é direcionada para famílias ricas – e de certo espectro ideológico. Na Turquia não é bem assim. Os mais pobres são levados para esse caminho como uma resposta do Estado.
Por isso, logo nos primeiros minutos da obra, o discurso que chega para aquelas crianças é a de promoção de alguns valores como orgulho nacional e gratidão pela oportunidade de uma educação formal de qualidade. Antes que a complexidade do genocídio de determinado grupo ultrapassasse a barreira da inocência natural daqueles estudantes, uma espécie de integralismo é formatado em suas mentes. Uma maneira de conduzir culturalmente a nova geração de meninos curdos – que não podem sequer fazer menção a tal palavra nas aulas de Geografia.
Veja o Trailer:
Porém, a forma como Karahan se debruça sobre a questão faz esse entrelaçamento territorial chegar para a nós quase de forma residual. Até porque, na mesma entrevista já citada, ele registra essa dificuldade de reconhecimento de identidade entre os vizinhos (tanto é verdade que a Apostila de Cinema usa a categoria de cinema asiático para o país, mesmo sabendo que essa rotulação é incompleta. Afinal, é europeu também). O foco de “O Protetor do Irmão” será a maneira como a masculinidade (e sua toxicidade) atua sobre determinado recorte de sociedade. O cineasta fará isso com propriedade, isolando sua história e cercando seu texto apenas de personagens homens, para tornar ainda mais profunda a abordagem.
De câmera na mão e usando a formatação 4×3, a ideia por trás das escolhas é emular a claustrofobia do internato. Ao mesmo tempo, há uma pressão dentro daqueles pequenos indivíduos em se colocar em um enquadramento imposto, o que já faz as representações imagéticas serem sufocantes na base narrativa. A forma hierarquizada de todas as relações, faz com que um “chefe de turma” (ou monitor) crie a ponte entre opressor e oprimido naquele microcosmo. Com pouca variação ao redor do mundo, qualquer transmissão de conhecimento aos homens reproduz os mesmo objetivos relacionados à força e resistência.
Desta forma, os exageros e/ou negligências acontecem com frequência – e são tratados com naturalidade. Na trama, a injustiça é percebida por Yusuf (Samet Yildiz), que vê seu melhor amigo Memo (Nurullah Alaca) sofrer as consequências de um castigo cruel. No rigoroso inverno da região, ele é obrigado a tomar banho frio e cai doente. O desejo de apoio de Yusuf é interpretado como desculpa e a enfermidade de Memo é vista como fraqueza. Um ciclo tóxico que não se encerra porque é algo endêmico, que promove uma cegueira aos valores que realmente importam para qualquer tecido social.
Há quem veja uma transfiguração de tragédia para comédia pela maneira como operam os desencontros, na tentativa de reconhecer a necessidade de tratamento médico para o menino. Confesso que não vi tantos traços de humor assim, me soou um drama bem mais cru do que as recepções iniciais e a própria fala de Karahan denotam. Entretanto, o que parece inquestionável é que as escolhas temáticas e de linguagem do realizador dão uma dinâmica agradável ao filme, que parece pronto para voar no circuito de festivais como vem ocorrendo – e de transformar o nome do diretor em mais um no radar em seus próximos trabalhos. Seu ritmo particular e vagaroso, encontrando barreiras de burocracias que a masculinidade cria, também é coerente.
Ainda é cedo para antecipar qualquer coisa, mas “O Protetor do Irmão” encerra um grande primeiro dia no 10º Olhar de Cinema, de narrativas documentais traçando uma memorabilia audiovisual – se encontrando ao fundo com uma ficcionalidade também forjada nas lembranças de seu realizador. Tudo para mostrar que a inocência é artigo de luxo na sociedade contemporânea.
Assista à conversa de Carla Italiano com Ferit Karahan sobre “O Protetor do Irmão”: