Sinopse: A artista multimídia alemã, pesquisadora e arquivista Thieme realizou diversas obras sobre a memória na Bósnia e Herzegovina, incluindo um curta metragem em 2010, no qual discretamente registrou locais que um dia serviram de palco na Guerra da Bósnia. Em “O Que Resta / Revisitado”, feito uma década depois, ela revisita esses lugares com uma pequena equipe e filma imagens estáticas do curta enquanto conversa com os moradores locais sobre o passado e suas vidas atuais. O projeto parte de um alicerce sombrio para algo mais alegre e leve, com uma disseminação lúdica da continuidade da vida que extravasa para além do quadro cinematográfico.
Direção: Clarissa Thieme
Título Original: Was bleibt / Šta ostaje | What Remains / Re-visited (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 10min
País: Alemanha | Áustria | Bósnia-Herzegovina
A Frieza do Olhar
“O que Resta / Revisitado“, exibido no Festival de Berlim 2020 e parte da seleção da Mostra Novos Olhares do 9º Olhar de Cinema é mais um interessante documentário que usa o território como protagonista. Clarissa Thieme faz um exercício audiovisual que lembra “Visages, Villages” (2017), longa-metragem em que Agnes Varda se juntou a JR para atravessar a França rememorando cenários fundamentais na carreira da saudosa cineasta. Em alguns momentos, a reprodução fotográfica de grandes proporções como elemento da narrativa também era aplicado.
Aqui Thieme resgata um curta-metragem seu do ano de 2010, “Sta ostaje” (O que Resta). Nele, ela se propunha a captar imagens estáticas de locais fundamentais para a Guerra da Bósnia, ocorrida de 1992 a 1995. A ideia era registrar uma mistura de abandono e calmaria de uma região traumatizada pelo sofrimento. Forma singela de expor a crueldade, através da construção imagética com pouca fragmentação ou uso de elementos extrínsecos. Sem narrativas, poucos depoimentos e nenhuma interferência sonora. Bem parecido com o que Lynne Siefert fez em “Gerações“, outro documentário experimental, que fez parte da seleção do Festival Ecrã em 2020.
Nesta segunda empreitada da diretora sobre o mesmo território, “O Que Resta / Revisitado” por vezes conclui que pouca coisa mudou. Pelo menos no horizonte, nas paisagens. Imprimindo grandes painéis que trazem o exato local como este se encontrava uma década antes, o filme se desenvolve novamente em planos estáticos e enquadramentos a média distância. Se em “Responsabilidade Empresarial“, parte da Mostra Outros Olhares do mesmo festival, o diretor Jonathan Perel adicionava à produção de imagens um conjunto de dados de um relatório sobre o apoio de grandes empresas argentinas ao golpe militar, aqui a relação do espectador com o que está na tela é bem mais sensorial.
Porém, por trás de grandes montanhas e uma bonita vegetação há um histórico de mortes causadas pelo conflito. Srebrenica, por exemplo, uma pequena cidade de pouco mais de 2.500 habitantes, foi um polo de genocídio de refugiados muçulmanos reconhecido pelo Tribunal Penal Internacional. Estima-se que ali há três mil pessoas enterradas em fossas, mas o número de desaparecidos pode ser o dobro disso. Quem se pega olhando sem pretensão para aqueles espaços, identifica mais o abandono, com alguns esqueletos arquitetônicos (que já existiam em 2010), do que memórias de uma guerra.
Por sinal, o que há de diferente nos territórios pelos quais Thieme transita, é uma ampliação do sentimento de maquiagem das praças públicas – com um pouco mais de arborização. Talvez uma tentativa de seguir adiante, de não se prender a um passado trágico, mas que já tem quase trinta anos. Conviver com lembranças de um conflito dessa magnitude é uma das grandes questões da humanidade. Não à toa, doenças neurológicas e psicológicas de veteranos de guerra sempre foram comuns. Porém, por mais que isso seja fato consumado, nunca o planeta se encontra em estado de paz absoluta. Sempre novas batalhas são inauguradas pelos mais diversos motivos.
“O que Resta / Revisitado” tem um terço final bem mais curioso em sua proposta de observação. Clarissa Thieme quebra essa frieza da pura imagem afastada quando alguns moradores da cidade se aproximam para comparar o painel de dez anos atrás com o que há hoje. Resgatam para si o discurso e analisam pontos que seriam por nós inalcançáveis por não fazermos parte daquela realidade – nem a diretora, por sinal. Da loja que foi pintada de outra cor ao carro de um morador que o vendeu para comprar outro. Detalhes que se opõe à distância imposta pela cineasta. Fica a dúvida se esse afastamento foi uma escolha artística ou se, para contar uma história de guerra, talvez seja prudente não se envolver tanto com ela.
Clique aqui e visite a página oficial do Olhar de Cinema.
Clique aqui e visite nossa categoria do Festival Olhar de Cinema, com todos os textos.