Sinopse: O documentário O Samba é Primo do Jazz vai mostrar a trajetória musical de Alcione Dias Nazareth, a nossa grande intérprete brasileira, a partir de suas referências musicais, sua inserção no mundo da música e sua relação com família e amigos. A cinebiografia nos aproxima de uma Alcione descontraída, divertida e matriarcal com a vida e o fazer artístico.
Direção: Angela Zoé
Título Original: O Samba é Primo do Jazz (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 10min
País: Brasil
A Loba e A Diva
Em um dos momentos mais interessantes de “O Samba é Primo do Jazz“, a diretora Angela Zoé resgata uma entrevista concedida por Alcione, protagonista do documentário, a Grande Otelo – parece ser, ainda, nos anos 1980. Aquele cenário, um restaurante com toalhas de mesa de pano branco, remete a um Rio de Janeiro hoje chamado de Rio Antigo – por sinal, um dos sucessos do início da carreira da cantora. Só que, quando ela lançou essa música, o conceito de Rio Antigo era outro – aquele que Chico Anysio testemunhou ao chegar na cidade na década de 1950. Aquele em que o entrevistador fazia dupla com Oscarito no Cinema Rian, em Copacabana – e que, provavelmente, já estava demolido quando o protagonista de “Macunaíma” (1969) encontrou um dos grandes nomes da história da canção popular. Alcione é samba, jazz, MPB, música romântica. Estica o conceito de sucesso ao máximo. E é uma Diva que, assim como a ideia por trás de conceitos como “Rio Antigo” e “Canção Popular”, também possui múltiplas manifestações.
O longa-metragem, exibido no quarto dia do Festival de Gramado de 2020, é uma coprodução da Globo Filmes com outros braços das corporação, como o Canal Brasil e a Globo News. Um filme que utiliza do vasto acervo da empresa para ilustrar o trabalho de acompanhamento da cineasta pelas comemorações dos 70 anos de Alcione. Rio de Janeiro, São Luís e Lisboa. Territorialmente, a cantora não encontrou barreiras alfandegárias para o seu êxito como artista. Musicalmente, também não. Foi caloura do programa “A Grande Chance”, de Flávio Cavalcante, cantora de um bar na zona sul carioca e um dos maiores nomes do samba. Seu pai, professor e maestro, aprimorou seu dom com a teoria musical. As divas do jazz norte-americanas deram novas perspectivas ao uso da voz por Alcione. O mercado fonográfico, a princípio, viu nela uma aposta para competir com Beth Carvalho e Clara Nunes na venda de discos. E Alcione vendeu, milhões.
“O Samba é Primo do Jazz“, apesar de centralizar na figura da biografada as atenções (as cenas em Portugal, que abrem o filme, por sinal, dão à Alcione o poder de conduzir o próprio filme), não se utiliza de exaltações numéricas. Bastaria uma simples pesquisa para quem deseja saber o poder da cantora na indústria. Nunca esteve em baixa em quase cinquenta anos de carreira e teve duas ondas ainda maiores de sucesso: na década de 1980, quando chegou a comandar na Globo um programa chamado “Alerta Geral” (e o filme nos brinca com encontros de Caetano Veloso com Dorival Caymmi e de Beth Carvalho com João Nogueira) e outro, no início dos anos 2000. Ou seja, ela esteve presente nos lares brasileiros no auge da venda de LPs e na febre dos DVDs musicais. Deste segundo período, “A Loba” tem um espaço reservado – e bem colocado pelo documentário.
Só que, ao mesmo tempo que Alcione é essa fortaleza de sucessos – construídos com liberdade artística para transitar do samba para as músicas românticas, o pagode e qualquer estilo que ela queira cantar, a diva tem, como outra característica, o respeito às suas origens – que ela carregou ao longo dos 70 anos de vida. Conhecida por sua vaidade e por sempre primar por uma presença no palco impecável, Alcione tem a simplicidade de uma brasileira que, mesmo com o mundo ao alcance das mãos, quer ter o melhor para os seus – e que eles estejam sempre por perto. No amor pelo Maranhão e na relação com suas irmãs, a cineasta consegue captar as diversas maneiras de ser Alcione. Ao abrir espaço em um show para Maria Bethânia, ela cuida de todo o sincretismo religioso que lhe atravessa a alma – e que também atravessa a alma deste país.
Com tantas formas de explorar seu objetivo, sempre há o risco de um filme como “O Samba é Primo do Jazz” se aproximar de uma estilizada reportagem televisiva. Até porque este outro veículo audiovisual (que também completou 70 anos) por vezes é uma zona de conforto para documentaristas que evitam ousar ao ter um objeto tão potente em suas mãos. Para quem gosta da TV, por exemplo, é possível encontrar não apenas Flávio Cavalcante, mas uma passagem de tempo de programas comandados por Marília Gabriela, uma das poucas que se dedicaram a trazer boas entrevistas a este meio.
Angela Zoé, porém, consegue equilibrar as ações. Não se estende em uma arquivologia preguiçosa, não exagera nos testemunhos emocionados ou na pluralidade de entrevistados – e nem faz a exaltação que mencionamos anteriormente. Com a apresentação da música que lhe inspirou o nome, “O Samba é Primo do Jazz” atravessa a tela tal qual Alcione: cheia de classe, seja na reunião com a família sentada cadeira de plástico até o alto do palco em Lisboa com as irretocáveis unhas postiças.
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