Sinopse: Em “O Som do Silêncio”, um jovem baterista teme por seu futuro quando percebe que está gradualmente ficando surdo. Duas paixões estão em jogo: a música e sua namorada, que é integrante da mesma banda de heavy metal. Essa mudança drástica acarreta em muita tensão e angústia na vida do baterista, atormentado lentamente pelo silêncio.
Direção: Darius Marder
Título Original: Sound of Metal (2020)
Gênero: Drama
Duração: 2h
País: EUA
O Som que Nos Protege
Um dos filmes mais surpreendentes da safra 2020 da temporada de premiações, “O Som do Silêncio” (péssima tradução de “Sound of Metal”, totalmente incoerente com a poética da obra) encontra-se disponível na Amazon Prime Video – e é, a despeito da manada de cinéfilos de bloquinho que acompanha cada lançamento, um longa-metragem a ser descoberto pelo grande público. Baseado na produção inacabada “Metalhead”, de Derek Cianfrance, o diretor Darius Marder nos provê um, cada vez mais raro, mergulho sensorial sobre a vida do protagonista Ruben (Riz Ahmed), baterista que descobre estar perdendo a audição. Um trabalho de imersão impressionante do ator, que desponta como um dos favoritos aos prêmios do primeiro semestre de 2021, incluindo o Oscar. Riz aprendeu a tocar o instrumento e também a linguagem de sinais, tampando totalmente as entradas dos ouvidos para compreender da melhor forma a realidade dos surdos.
A estreia de Marder na direção é um exemplo de ousadia a ser levado em consideração por aqueles que querem se posicionar no novo mainstrem do cinema norte-americano. A cena inicial parecia nos colocar dentro de uma narrativa parecida com “Whiplash: Em Busca da Perfeição” (2014), do superestimado Damien Chazelle e seus artifícios muitas vezes vazios sob a ótica das imagens produzidas. Porém, o cineasta, ao nos levar à perspectiva de Ruben, é bem mais próximo de uma das grandes histórias do início desse século, “O Escafandro e a Borboleta” (2007), de Julian Schnabel. O que o filme francês faz com a visão de Jean-Dominique Balby (Mathieu Amalric), a obra de Darius faz com o som, em um desenho desse elemento que causa impacto mesmo que não estejamos em uma saudosa sala de cinema. Por sinal, Amalric (que também é diretor), faz uma importante participação na parte final do longa-metragem, provavelmente uma não-coincidência muito bem-vinda.
“O Som do Silêncio” começa a nos ganhar desde o primeiro minuto. A música tomando conta da apresentação da banda composta por Ruben e Lou (Olivia Cooke, uma das mais promissoras atrizes em atividade – destaque na série “Bates Motel“) – mas é no dia seguinte, quando Marder explora os sons da rotina dentro do trailer do casal, que o espectador começa a sentir algo diferente. Liquidificador, cafeteira, a agulha arranhando um LP. Os sons são parte de nossas referências, um sentido que não conseguimos abdicar enquanto estamos em estado de consciência. O silêncio absoluto é muito difícil de atingir e, até mesmo quando evitamos o barulho, é a partir dele que compreendemos o que está ao nosso redor.
Talvez por isso a dor que sentimos junto do personagem seja forte. Por mais que o cinema tenha endurecido nossa carcaça enquanto público, projetar uma surdez na meia-idade nos provoca enquanto indivíduo. Ainda mais se imaginarmos alguém que trabalha com música. O desenho de som do longa-metragem nos leva a transitar por zumbidos, vozes abafadas e a respiração de desespero de Ruben. Porém, outras questões estão postas. O que se inicia com o alto custo de um tratamento alternativo (e não coberto pelo plano de saúde), que promete “curar” a surdez artificialmente, nos leva a um debate ético sobre a busca por dignidade de quem não pode ouvir. É nesse ponto que o filme extrapola uma curiosa trama ou um envolvente drama. Ao nos levar para dentro de uma comunidade surda, “O Som do Silêncio” nos faz refletir sobre pequenos gestos pouco trabalhados na sociedade.
A acessibilidade audiovisual é um tema que encontra defensores em toda a esquina, mas são poucos os que agem de forma pragmática em relação a isso. Provavelmente parte do público estranhará a placa na estrada que avisa que há trânsito de crianças surdas pelo local. Como um motorista chamaria a atenção delas? Em outra escolha especial do filme, os diálogos na língua de sinais não são traduzidos pelas legendas, apenas quando o personagem o qual acompanhamos consegue compreender. Estamos diante de um idioma universalista, com poder de facilitar a comunicação até entre os não-surdos. Porém, quem de nós se preocupa em ter o mínimo de alfabetização? Nos cinemas dos Estados Unidos a obra foi exibida com legendas – o que, conhecendo o público daquele país, consumidor focado totalmente na própria produção (ou outras faladas em inglês), tem a força de gerar outro tipo de provocação. A própria linguagem da cultura de massa, com suas intenções supostamente comunitárias, deixa à margem uma parcela da população porque nunca se naturalizou na indústria algumas providências inclusivas.
Mesmo com todos esses pontos que passam pela nossa mente, o que comanda o longa-metragem ainda é o envolvimento com Ruben. O que representa aquela situação, o que lhe move a partir do que o destino lhe reservou. Quase sempre com a câmera na mão, usando uma textura de imagem que lembra uma ambientação setentista (quando o sonho de uma banda de rock ganhando a estrada fazia muito mais sentido) Darius Marder nos desafia a todo instante. Seu protagonista aos poucos vai se tornando obsessivo por uma cura e aquele debate ético mencionado se materializa em uma grande cena, um diálogo entre ele e Joe (Paul Raci) – ator que, na vida real, é um importante membro da comunidade, filho de pai e mãe deficientes auditivos.
Por sinal, pausa para o vocábulo deficiente – usado aqui no final de forma propositalmente equivocada e esdruxulamente provocadora – para que a grande mensagem de “O Som do Silêncio” ganhasse a dimensão necessária. Ainda há espaço nos para uma melancólica canção original escrita e interpretada pelo co-roteirista Abraham Marder. Uma linda história de um homem que, ao tentar controlar suas ações, ter a posse de seu próprio destino, compreende que a liberdade é um conceito, muitas vezes atrelado à dignidade. Ser o que devemos ser não é uma automática aceitação – é um processo de autoconhecimento que – ao ser feito com respeito, nos faz projetar esse mesmo respeito nos outros.
Ouça “Green”, de Abraham Marder: