Sinopse: Na Zona Norte do Rio de Janeiro, um grupo de amigos encontra na realização de vídeos caseiros de humor e automutilação o escape necessário para um cotidiano duro, de futuro incerto. De 2006 a 2021, quinze anos de imagens narram os (des)caminhos de uma cidade/país profundamente injustos, mas também a formação do olhar de um cineasta. Em plena pandemia e em meio ao desmonte de toda uma estrutura de suporte público ao audiovisual, brota uma joia da mais pura energia e sentimento: o cinema respira – ressignificando imagens, condensando e congelando o tempo, embaralhando passado e presente.
Direção: José Marques de Carvalho Jr.
Título Original: O Sonho do Inútil (2021)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 12min
País: Brasil
Do Outro Lado do Rio
Na competitiva do 10º Olhar de Cinema, o documentário “O Sonho do Inútil” nos leva aos meandros da memória do cineasta José Marques de Carvalho Jr. Produtor de vídeos caseiros para a internet a partir do final da década 00, ele revisita esse período da vida em um reencontro com os amigos que faziam parte da trupe do Inútil. Um tipo de humor a partir da trollagem – que envolveu uma geração a partir da primeira referência do cineasta, a série “Jackass” (2000-2002) e que, até hoje, pauta a atual produção de conteúdo para a internet (sem esquecer o sucesso televisivo da época do “Pânico“).
O longa-metragem tem algumas camadas que o tornam muito mais do que um conjunto de imagens ressignificadas a partir das lembranças de seu realizador. Um grande aspecto trazido pelo filme é o da linguagem e dos meios de acesso de produção audiovisual. Um pouco de democratização que fez algumas barreais impostas pelas classes sociais serem rompidas. Menos jovem do que a galera do Inútil, o meu consumo de vídeos caseiros era na rua da frente aqui no Grajaú, zona norte do Rio de Janeiro capitaneada pela Tijuca (e que, diga-se de passagem, não aceita – preconceituosamente – ser chamado de subúrbio). Depois fui saber o quanto a Pepa Filmes era distribuída informalmente aos amantes do trash no final dos anos 1990, ganhando uma conotação muito particular pelo olhar carioca, no limiar do despojado e do esculhambado.
A geração e o Rio de Janeiro em “O Sonho do Inútil” possuem outra formatação. No início da era da digitalização, esses garotos do subúrbio, na região da Penha e Cordovil, tiveram acesso a um equipamento que conseguiu materializar e tornar mais perene sua criatividade. O que era uma diversão na criação de fantasias para participação nos bailes temáticos do Olimpo ou do Olaria começou a ganhar uma proposta narrativa, uma mistura de comédia de absurdos com pegadinhas que colocavam como vítimas os populares em cena e o próprio público. Uma linguagem que encontrou muitos adeptos quando a internet ganhou mais velocidade de conexão e chegou a um público-alvo sedento por práticas diferentes do tradicional.
Porém, chama a atenção a ressignificação da própria palavra “inútil”. Isso porque é um termo usada não apenas como adjetivo de alguém, mas também de algo que ele faça. Nem sempre andam juntos, é bem verdade. Há pessoas talentosas que se esforçam para produzir algo de pouca utilidade. Porém, a conclusão que chegamos é que José e seus amigos não eram nem faziam nada descartável. A própria reunião do grupo já dava sentido ao que estava sendo realizado. Em uma realidade abalada pela falta de perspectiva, de uma cidade partida e com chagas abertas, a criminalidade para alguns é mais do que um caminho possível, chega a ser provável.
Sem workshops prévios ou conhecimento que embasasse sua teoria, o Inútil encontrou uma função social dentro de sua própria dinâmica. Algo que a arte tem o poder de fazer e que surge aqui de maneira espontânea por meio de seus integrantes – e não necessariamente com intenção de ser permanente em suas vidas. Para além disso, conseguiu realizar uma formação de plateia que reverbera até hoje. Na conversa de José e Aluã Topeira com Eduardo Valente no canal oficial do Olhar de Cinema no YouTube – e que você assiste ao final dessa crítica – é lembrado que os outros dois longas-metragens de Carvalho estão na mesma plataforma gratuita de vídeos e de forma bem sucedida. “Idioma Desconhecido” (2018), no momento, possui quase 350 mil visualizações.
Mais adiante, o diretor dá um caráter investigativo no passado de dois personagens: Douglas Santos e o mesmo Aluã. O primeiro se afasta antes da turma, após um acidente nas gravações que deixa parte de seu corpo queimado. O segundo, que vai para São Paulo para trabalhar como chefe de cozinha, tem pouco contato e é marcado por traumas do passado com a família. As sequências quem focam no destino dos dois dá uma carga maior de emoção a um documentário que começa com a mesma abordagem despretensiosa dos melhores vídeos de humor da internet. A união entre as imagens de arquivo com as representações do presente em “O Sonho do Inútil” é uma das mais equilibradas dentre as produções mais recentes que se valem dessa convenção.
É, não acidentalmente, uma radiografia do Rio de Janeiro, uma cidade que tem texturas próprias, que não deixa dúvidas se determinada esquina é da zona sul, da Lapa ou do subúrbio. Ou do Grajaú de Pepa e de quando o bicho pegava para o D2. Mas, aí, são outras gerações, que já contaram suas histórias. Chegou a hora de conhecer a de José Marques de Carvalho Jr., um jovem cineasta que aprendeu desde cedo a ser popular e sensível, com uma arte que passa longe da inutilidade.
Assista à conversa de Eduardo Valente com José Marques de Carvalho Jr. e Aluã Simões sobre “O Sonho do Inútil”: