Sinopse: O primeiro longa-metragem de Raúl Ruiz foi considerado perdido por décadas, até que seus rolos mudos incompletos foram encontrados em um cinema de Santiago. O trabalho do autor chileno foi continuado por sua viúva e editora de longa data, Valeria Sarmiento, também uma cineasta subversiva e brilhante. Tal como a dança, “O Tango do Viúvo e seu Espelho Deformador” avança para a frente e para trás, com rostos de 1967 e vozes de 2019 se unindo para moldar a história de um homem assombrado pelo fantasma nômade de sua esposa. Documentário e ficção combinam-se de forma bela, engraçada e gloriosamente desconcertante para formar a apoteose de um cinema eternamente sorrindo para a morte.
Direção: Raul Ruiz e Valeria Sarmiento
Título Original: El Tango del Viudo y Su Espejo Deformante (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 3min
País: Chile
Gotan
Não há como saber o que haveria de ser de “O Tango do Viúvo” caso seu realizador Raúl Ruiz houvesse terminado. O que nos é sugerido já nos créditos iniciais, é que o admirável realizador focaria realmente apenas na primeira parte da trama, ou seja, o tango do viúvo – o que podemos comprovar por sua filmografia e pelo caráter único desse filme em particular.
Obra iniciada em 1967 pelo cineasta chileno que foi para Paris, assim como muitos de nossos artistas, em decorrência do regime militar, a obra só foi redescoberta décadas após seu início. A viúva de Raúl Ruiz, Valeria Sarmiento – há também que se dizer, admirável editora – continuou a obra e a reconstruiu de uma maneira a fazer referência aos grandes nomes do surrealismo sul-americano, mas implementou um ar contemporâneo ao rolo iniciático.
A produção começa como um noir surrealista, dado comum às referências francesas dos cineastas sul-americanos na década de 60. Há, no entanto – e aqui falo não somente pela obra de Raúl Ruiz, mas por outros que o acompanharam como Luis Buñuel, Leonardo Favio, Fernando Cazals ou Alejandro Jodorowsky – uma influência literária local bastante forte. Assim, os filmes dialogam com a literatura surrealista sul-americana, como esse o faz.
O intelectual Iriarte enlouquece lentamente sem que saibamos exatamente como se deu o início de sua jornada pelo subconsciente da mente. Com ele e, com a câmera que baila pelo cenário, os sonhos se misturam à realidade de nossa personagem central. Ainda que o sobrinho tente trazê-lo de volta a um passado mais estruturado, às vezes, ele mesmo faz parte das alucinações (alucinações?) do protagonista.
Entre pesadelos constantes com o mar, pessoas caindo, perucas, rios de sangue e uma defunta desnuda; nosso professor parte subconsciente afora sem possibilidades para volta. Enlouquece, morre temporalmente e se mata. O fim trágico de Iriarte, entretanto, é apenas a primeira parte de “O Tango do Viúvo“. Em uma sacada genial, como somente montadoras geniais teriam, Sarmiento reinaugura o filme de Ruiz retrocedendo-o também lentamente ao início.
A morte da personagem central, é o início de um novo olhar sobre o material que se perdeu durante anos, mas encontrou nas mãos da edição a possibilidade de duas versões ou dois lados de uma mesma história.
A partir daí, tudo o que vemos são imagens rebobinadas que fazem, agora sim, ser possível voltar ao passado. Pergunto-me se esse seria um filme que teria um sentido correto. E a resposta é, possivelmente, não. Ainda que a mente de Raúl Ruiz tenha pensado em uma história inicial para “O Tango do Viúvo”, sua editora acrescentou um espelho que o tornou não somente deformado no sentido daquilo que foi corrompido, mas também daquilo que foi arrebatado por outro destino.
Às vezes lembrando um pouco a clássica “La Jetée” (1961) de Chris Marker pela maneira como utiliza os frames e pela própria fotografia, o espelho deformador de Sarmiento nos faz mesmo é ter saudades da parceria com o viúvo. Al revés, como diriam os hispanohablantes, novas cenas são introduzidas e uma nova história é contada de trás para frente e de frente para trás. Novas informações ou fragmentos inseridos. Ruídos sem sentido que saem das bocas também ao contrário. Se quando iniciamos “O Tango do Viúvo” não sabemos exatamente o que será investigado, quando o terminamos temos certeza de que foi a montagem.
O material de Raúl Ruiz não poderia ter sido finalizado de melhor maneira. Surrealista e experimental, do jeito que ele apreciava.
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